Páginas

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A INSTABILIDADE ORTOGRÁFICA AMEAÇA UM PATRIMÓNIO IDENTITÁRIO

Os próprios alunos reagem criticamente à nova ortografia decretada não só pela falta de lógica em algumas situações, como também pelo facto de em lugar de evitar os equívocos os fomentar.


Por Maria do Carmo Vieira

Assistimos de contínuo à banalização do impensável e do absurdo não só na política, externa e interna, mas também na cultura, sendo sobre este último aspecto que me debruçarei.

A Academia das Ciências de Lisboa é um exemplo flagrante, se lembrarmos a forçada implementação do Acordo Ortográfico (AO) de 1990, que persiste intocável apesar das suas “contradições, controvérsias e erros” que os próprios mentores admitiram. Somos com efeito confrontados com uma instituição que em lugar de pugnar sempre, sem tréguas, pelo Conhecimento, o desfigura e desvirtua, com um à-vontade chocante, e penso, de novo, no AO. A inércia e a indiferença actuais perante a instabilidade ortográfica, causada pela imposição do famigerado, nomeadamente no ensino, pondo em causa a sua qualidade, são atitudes intoleráveis, tanto mais que envolve um património identitário.

Mas esta Academia não está só, porque sofrendo do mesmo mal, acompanham-na duas associações de professores de Português que, na sua estreita cumplicidade com o Ministério da Educação, respiram livremente perante o aviltamento da ortografia da língua portuguesa, indiferentes ao sentido de responsabilidade que a sua função exigiria. Refiro-me à APP (Associação de Professores de Português) e de forma mais crítica à Anproport (Associação Nacional de Professores de Português) porquanto, ao invés da APP, fervorosa apoiante do AO, desde o primeiro momento, a Anproport propôs, entre os seus objectivos primeiros, lutar contra o Acordo Ortográfico, o que nunca aconteceu.

Foi sempre para mim incompreensível a aceitação acrítica da “Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” (1990), texto único que os defensores do AO invocam, muitos dos quais sem nunca o terem lido e creio que se alguns o fizessem corariam de vergonha perante os disparates. A própria Academia continua estranhamente a aceitar a argumentação aí desenvolvida, não discutindo com académicos críticos, antes pactuando com a ligeireza, a ignorância e até o ridículo evidenciados no texto. A “teimosia lusitana” em manter as consoantes c e p não pronunciados, a defesa das crianças cuja memória é prejudicada pelo esforço em reter as tais consoantes ou “a pronúncia” como “critério científico” são alguns dos exemplos anedóticos que aí encontramos, num testemunho trágico sobre o que se perspectiva relativamente ao estudo e ao conhecimento.

Os próprios alunos reagem criticamente à nova ortografia decretada não só pela falta de lógica em algumas situações, e lembramos o “Egito e o egípcio”, como pelo facto de em lugar de evitar os equívocos os fomentar. “Pêlo”, por exemplo, perdeu o acento e tornou-se igual a «pelo», o mesmo acontecendo com o verbo parar na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo que, tendo perdido o acento, se confunde com a preposição “para”, “retractar”, do latim 'retractare', tem novo traje, distorcendo a sua etimologia, ao escrever-se como “retratar” (fazer um retrato), “espectador” tornou-se “espetador” e o ridículo é tal que houve editoras que, mesmo cumprindo o AO, decidiram, neste caso, usar sempre “espectador”.

Não é de mais repetir as palavras do Professor António Emiliano, da Universidade Nova, a propósito da “aprendizagem de qualquer ortografia […] que não é tarefa fácil para ninguém nem é suposto ser: a função de uma ortografia não é nem facilitar o ensino da escrita nem reflectir a oralidade; a ortografia serve para codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional.” Depois da implementação forçada do AO, à revelia da vontade dos portugueses (lembre-se também os 25 pareceres contrários) tudo tem acontecido como se a ortografia fosse a representação de um espectáculo em que cada um escreve para o “lado que lhe dá mais jeito”, como galhofeiramente afirmou Pedro Santana Lopes. Compreender-se-á em parte a sua boa disposição porque este AO foi, na verdade, cozinhado e pretensamente discutido entre muita galhofa e gargalhada, como testemunham as actas da sua discussão, na Assembleia da República, na qual participou também Pedro Santana Lopes.

Este gosto pelo lúdico boçal, retrato da crescente falta de cultura e reflexo de uma crescente infantilização, expõe-se também exuberantemente na Escola através de muitos manuais, nos quais já encontrei, por várias vezes, a convivência entre “espetáculo” e “espectador”, e “espetáculo” e “espetador”, neste último caso em sintonia com o disposto no AO, tropeçando os alunos no “espetador”, pela estranheza: “Espetador?”, perguntam. Confirmando ainda o que escrevi, no início deste parágrafo, deixo-vos dois exemplos elucidativos que retirei de um manual do 2.º ciclo, de História, disciplina que, a par de Geografia, se encontra em vias de extinção. A propósito do estudo da invasão e conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos do Norte de África, no séc. VIII, os autores apresentam várias questões de escolha múltipla, onde a escrita obviamente não intervém, substituída por uma cruz. Transcrevo o primeiro exemplo: “Aos muçulmanos do Norte de África que invadiram a Península Ibérica os cristãos chamavam: a) Alás, b) Mouros, c) Andaluses, d) Moçárabes”; e o segundo: “Os muçulmanos também deram a conhecer processos de rega até aí desconhecidos: a) a tia, a picota e o açude; b) a prima, a picota e o açude; c) a sogra, a picota e o açude; d) a nora, a picota e o açude.” Posso dizer que algumas alunas, perante o primeiro exemplo, acharam que a colega muçulmana da sua turma “ia ficar triste porque se sentiria gozada”, reagindo também com estupefacção ao absurdo de “tias, primas e sogras”. “O que é isto?", foi o que perguntaram incrédulas com o que viam escrito. Se os autores pretendiam suscitar o riso, nesse doentio e exasperante lúdico, a reacção foi precisamente a inversa porque as crianças não são imbecis, se bem que desde a reforma de 2003 se tenha vindo a actuar para que assim aconteça, prejudicando o seu desenvolvimento e perigando o seu futuro.

Num ambiente tão propício ao riso e à brincadeira, nem a Academia das Ciências escapa, alastrando o pântano cultural, lamentavelmente perante a nossa indiferença colectiva.



Fonte: Público.pt




Sem comentários:

Enviar um comentário