Páginas

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

SECRETAS – PRÓS E CONTRAS DE UM SERVIÇO COLOCADO EM MÃOS ERRADAS

A proposta, impulsionada por Úrsula von der Leyen, de criar uma célula de inteligência dentro da Comissão Europeia, tem, no papel, o potencial de centralizar informações, antecipar ameaças híbridas, coordenar respostas a ciber-ataques e consolidar dados dispersos por 27 Estados.


Por João Gomes

Por mais que se tente enquadrar a ideia de um serviço secreto europeu como um passo necessário para a segurança coletiva, a realidade política da União Europeia lança sombras profundas sobre qualquer projeto deste tipo. 

A proposta, impulsionada por Úrsula von der Leyen, de criar uma célula de inteligência dentro da Comissão Europeia, tem, no papel, o potencial de centralizar informações, antecipar ameaças híbridas, coordenar respostas a ciber-ataques e consolidar dados dispersos por 27 Estados. No entanto, a distância entre o papel e a prática é enorme, e os riscos são mais palpáveis do que os benefícios.

A primeira pedra de toque é a falta de unidade real da UE. Estados-membros com prioridades divergentes - Alemanha, França, Polónia, Hungria - jamais olham para a segurança com o mesmo prisma. Cada país tem serviços de inteligência próprios, habituados a operar no segredo da sua soberania, com leis, cultura e prioridades próprias. Um órgão supranacional que tentasse intervir ou coordenar sem consenso profundo encontraria resistência e, em muitos casos, boicote velado. Ao invés de promover coesão, poderia tornar-se fonte de rivalidade e desconfiança.

O segundo ponto crítico é o risco de colocação nas mãos erradas. Um serviço secreto com capacidade de recolha de dados, análise estratégica e influência sobre políticas de segurança não é neutro. Nas mãos de líderes ou burocratas com agendas próprias, mesmo bem-intencionadas, o órgão poderia ser instrumentalizado politicamente, interferindo em decisões nacionais ou privilegiando interesses de alguns Estados em detrimento de outros. Sem mecanismos de supervisão robustos, a transparência necessária e controlo democrático real, torna-se uma arma de potencial abuso, mesmo em nome da “segurança coletiva”.

Além disso, há o perigo da confusão analítica. Serviços nacionais conhecem profundamente os seus contextos locais; a interpretação centralizada de dados, sem este conhecimento granular, pode gerar alarmismos, falhas de avaliação ou políticas mal calibradas. A União Europeia, fragmentada por divergências políticas e económicas, poderia ver-se a criar um instrumento que, em vez de unir, espalha descoordenação e erros estratégicos.

E finalmente, não se pode ignorar o efeito sobre a própria UE. Um serviço secreto mal concebido, opaco e centralizado, correria o risco de exacerbar tensões internas, alimentar suspeitas entre Estados-membros e acelerar processos de desagregação política. Na prática, a Comissão Europeia poderia criar uma estrutura que, sob o pretexto da segurança, se transformaria num catalisador de divisões, tornando o projeto europeu ainda mais vulnerável.

Em termos de benefícios concretos, eles existem, mas são limitados. Centralização de dados, coordenação de ameaças transnacionais e redução de dependência externa são vantagens teóricas; na prática, dependem da cooperação plena de Estados-membros que, na realidade atual, é rara e irregular. A eficácia estratégica do serviço está condicionada a algo que a UE não tem: união política verdadeira e consistente.

Em resumo, um serviço secreto europeu tem mais riscos do que benefícios se colocado nas mãos erradas. A história das polícias secretas europeias mostra que concentração de poder em estruturas opacas pode levar a abusos e erros de proporções difíceis de medir. Num contexto europeu fragmentado, a criação de tal órgão não é apenas uma questão de inteligência ou segurança: é uma aposta arriscada na governança supranacional, que poderia revelar-se uma dor de cabeça institucional e política de dimensão continental.

A reflexão é clara: um serviço secreto europeu só funcionaria se a UE se tornasse realmente unida - algo que, pelo atual panorama de divergências e rivalidades internas, parece uma miragem. Até lá, os riscos superam os ganhos, e o projeto corre o perigo de transformar-se numa sombra dos problemas que pretende resolver.

Quando a vigilância se torna o centro do poder, a união transforma-se em suspeita.




Sem comentários:

Enviar um comentário