janeiro 2020
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sábado, 25 de janeiro de 2020

COMPREENDER O CONFLITO DA LÍBIA

O conflito da Líbia é um dos conflitos mais problemáticos da actualidade por envolver várias partes com interesses divergentes reunidos em duas administrações.

Por Paulo Ramires

A intervenção da NATO em 2011 chamada de “intervenção humanitária” liderada pela França, EUA e Itália destruiu a Líbia de Muamar Kadafi, Kadafi tinha como plano vender o petróleo líbio em troca de uma moeda – o Dinar – com base no ouro desafiando assim o sistema imperial do petrodólar dos EUA. Os EUA não pensaram duas vezes e bombardearam a Líbia, e os europeus querendo assegurar os seus interesses petrolíferos juntaram-se aos EUA apoiando o envio da al-Qaeda e outros grupos terroristas para matar Kadafi, o que de facto veio a acontecer. Após o ataque da NATO, vários grupos de guerrilheiros e terroristas deslocaram-se para a Líbia representando o interesse de vários países e potencias, tornando o conflito da Líbia, um conflito desenvolvido por procurações onde os senhores da guerra têm um papel preponderante e de representação. O conflito está centrado em duas partes, Fayez al-Sarraj lidera o Governo do Acordo Nacional (GAN) com base em Tripoli, tendo o apoio das Nações Unidas e das nações ocidentais, incluindo os EUA, mas também a Turquia, o Qatar e a Itália. O GAN tem perdido terreno para a outra parte – o Exercito Nacional Líbio (ENL) – liderada pelo Marchal Khalifa Haftar que tem a sua sede de poder baseada na cidade de Tobruk no leste da Líbia. Haftar é apoiado pelo Egipto, os Emirados Árabes Unidos(EAU), Rússia, Arábia Saudita, Jordânia e França recebendo todavia contactos dos EUA. Haftar controla cerca de 90% da Líbia, fugindo ao seu controlo apenas as cidades de Tripoli e Misrata.

O que os diferentes países pretendem?

A Itália, a antiga potência colonial pretende a estabilização do país e manter acordos feitos com o governo de al-Sarraj sobre segurança e sobre petróleo. Roma fez ainda um acordo controverso com o GAN sobre migração, assunto caro para os italianos. A França nega oficialmente o seu envolvimento no apoio a Haftar mas apoia-o, vendo neste senhor da guerra uma forma de combater o extremismo e assegurar os seus interesses petrolíferos na Líbia. A Arábia Saudita, o Egipto e os EAU vêem em Haftar uma forma de combater o islão político, em particular a Irmandade Muçulmana que eles denunciam como organização terrorista. O GAN inclui facções da Irmandade Muçulmana que são apoiados pela Turquia e pelo Qatar. A Turquia tem várias razões para apoiar o GAN nomeadamente pelas suas aspirações históricas e territoriais desejando o controlo de várias zonas do leste do Mediterrânio que contêm várias reservas de gás natural, neste sentido Ankara e o governo de al-Sarraj assinaram recentemente um acordo de contencioso de fronteira marítima que permite à Turquia a exploração dessas zonas. Os EUA apoiam oficialmente o GAN mas ficaram em parte de fora do conflito tendo porém tido contactos cordeais com Haftar. A Rússia pretende expandir a sua influência na região preenchendo um vazio na diplomacia internacional para acabar com um conflito sanguinário às portas da Europa num país produtor de petróleo.

O papel do petróleo na Líbia

As duas administrações têm também lutado pelo controlo do petróleo Líbio, Haftar conseguio o controlo do chamado petróleo crescente líbio onde estão localizadas as maiores reservas de hidrocarbonetos. Por outro lado as Nações Unidas emitiram resoluções em que a companhia estatal líbia com sede em Tripoli, a National Oil Corporation(NOC) é a única entidade autorizada para gerir e vender petróleo tendo Haftar tentado quebrar esse monopólio.

Existem várias empresas petrolíferas a operar na Líbia mas as principais sãs a italiana ENI que sofre a concorrência da Total francesa que pretende estender a sua actividade no país. A BP tem também aumentado a sua produção e a Tafnet russa retomou a exploração no final do ano passado. 

A posição da União Europeia

A estabilização da Líbia é um objectivo importante da União Europeia por casa de questões como a migração, interesses energéticos, segurança ou a contenção do extremismo islâmico, porém a União Europeia encontra-se dividida em relação à Líbia, pelo facto da Itália e a França estarem em campos opostos. Esta situação reflecte-se nas suas decisões como foi o caso do bloqueio francês no ano passado duma declaração da União Europeia que pedia a Haftar para parar a ofensiva em Tripoli ou a declaração de apoio a al-Sarraj que ficou em grande parte sem resposta.

A migração tem sido um problema para a União Europeia significando mesmo uma ameaça à estabilidade social e política da união, várias pessoas com origem no norte de África e Médio Oriente têm partido da Líbia em direcção à Europa, estas pessoas podem ser migrantes económicos mas também terroristas e extremistas, mesmo assim o tratamento dado a estes migrantes por parte dos europeus tem merecido criticas relacionadas com a defesa dos Direitos Humanos. Também a Associated Press descobriu recentemente que vastas somas de dinheiro com origem na União Europeia têm ido parar às mãos de guerrilheiros e autoridades costeiras que exploram e abusam esses migrantes.

No entanto o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrel veio defender uma missão militar para defender o recente cessar-fogo entretanto acordado, contudo os estados membros têm se recusado a implementar essa ideia pois note-se que na Líbia já existem mercenários pagos por vários países, entre os quais a Turquia e a Rússia, razão pela qual seria arriscado enviar tropas para a Líbia.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

CHAMADA ÀS ARMAS, A OTAN MOBILIZA-SE EM DUAS FRENTES

De acordo com um antigo projecto anunciado em 2013, a Alemanha conseguiu convencer o Presidente Trump a enviar tropas europeias para o Médio Oriente, sob comando da NATO. A Aliança, por sua vez, considera ser uma oportunidade para se estabelecer na região Indo-Pacífica e tornar-se uma organização mundial, sobretudo, apoiando-se na questão de Taiwan. Para preservar a sua credibilidade, a NATO deve mostrar que mantém a sua força perante a Rússia e organizará exercícios gigantescos - Defender Europe 20.

Por Manlio Dinucci

NATOME: Assim, o Presidente Trump, que se orgulha do seu talento para criar siglas, já baptizou o destacamento da NATO no Médio Oriente, por ele solicitado por telefone, ao Secretário Geral da Aliança, Stoltenberg. Este concordou imediatamente, que a NATO deveria ter “um papel cada vez maior no Médio Oriente, particularmente, nas missões de treino”. Ele participou, em seguida, na reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE, salientando que a União Europeia deve permanecer ao lado dos Estados Unidos e da NATO, porque “embora tenhamos feito progressos enormes, o Daesh pode regressar”. Os Estados Unidos procuram, deste modo, envolver os aliados europeus na situação caótica provocada pelo assassínio, autorizado pelo próprio Trump, do General iraniano Soleimani, logo que desembarcou no aeroporto de Bagdad. Depois do Parlamento iraquiano ter deliberado a expulsão de mais de 5.000 soldados americanos presentes no país, juntamente com milhares de pessoal militar de empresas privadas, contratados pelo Pentágono, o Primeiro Ministro Abdul-Mahdi, pediu ao Departamento do Estado para enviar uma delegação a fim de estabelecer o procedimento da retirada. Os EUA - respondeu o Departamento – irão enviar uma delegação “não para discutir a retirada de tropas, mas o dispositivo adequado de forças no Médio Oriente”, acrescentando que em Washington se está a ajustar “o reforço do papel da NATO no Iraque, alinhado com o desejo do Presidente de que os Aliados partilhem o fardo de todos os esforços para a nossa defesa colectiva”.

O plano é claro: substituir, totalmente ou em parte, as tropas EUA no Iraque pelas dos aliados europeus, que se encontrariam nas situações mais arriscadas, como demonstra o facto de que a própria NATO, depois do assassínio de Soleimani, suspendeu as missões de treino no Iraque. Além da frente meridional, a NATO está a ser mobilizada na frente oriental. Para “defender a Europa da ameaça russa”, está a preparar-se o exercício Defender Europe 20 que, em Abril e Maio, terá o maior destacamento de forças EUA na Europa, dos últimos 25 anos. Chegarão dos Estados Unidos 20.000 soldados, incluindo vários milhares de militares da Guarda Nacional dos 12 estados dos EUA, que se juntarão aos 9.000 já presentes na Europa, elevando o total para cerca de 30.000 militares. A eles juntar-se-ão 7.000 soldados de 13 países europeus da NATO, entre os quais a Itália e 2 parceiros, a Geórgia e a Finlândia. Além dos armamentos que virão do outro lado do Atlântico, as tropas americanas empregarão 13.000 tanques, canhões auto-propulsores, veículos blindados e outros meios militares dos “depósitos pré-posicionados” dos EUA na Europa. Comboios militares com veículos blindados percorrerão 4.000 km por 12 artérias, operando em conjunto com aviões, helicópteros, drones e unidades navais. Páraquedistas dos EUA da 173ª Brigada e italianos da Brigada Folgore serão lançados em conjunto, na Letónia.

O exercício Defender Europe 20 assume maior relevo, na estratégia EUA/NATO, após o agravamento da crise no Médio Oriente. O Pentágono que, no ano passado enviou 14.000 soldados para o Médio Oriente, está a desviar na mesma região, algumas forças que se estavam a preparar para os exercícios de guerra na Europa: 4.000 paraquedistas da 82ª Divisão Aerotransportada (incluindo algumas centenas de Vicenza) e 4.500 marinheiros e fuzileiros navais do navio de ataque anfíbio USS Bataan. Outras forças, antes ou depois do exercício na Europa, poderiam ser enviadas para o Médio Oriente. No entanto, o planeamento do Defender Europe 20, observa o Pentágono, permanece inalterado. Por outras palavras, 30.000 soldados dos EUA exercitar-se-ão a defender a Europa de uma agressão russa, um cenário que nunca poderia verificar-se porque no combate, usar-se-iam não tanques, mas mísseis nucleares. No entanto, é um cenário útil para semear tensões e alimentar a ideia do inimigo.

Fonte: Il Manifesto (Itália)


quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

CIMEIRA SOBRE A LÍBIA E DIPLOMACIA RUSSA


Por Strategic Culture Foundation

A Líbia está dividida entre um acordo político pacífico - ou mais uma guerra civil. Mas pelo menos as duas principais facções em guerra esta semana entraram num processo de diálogo quando participaram de numa cimeira em Moscovo organizada pela Rússia.

A Turquia foi a segunda parte na cimeira desempenhando funções de mediadora, juntamente com a Rússia. Ancara é um firme defensor do Governo da Líbia, reconhecido pela ONU e com base em Trípoli. Moscovo também reconhece o GNA, mas também possui fortes vínculos com o Exército Nacional da Líbia (LNA), liderado pelo Marshall Khalifa Haftar, que está sediado na cidade de Tobruk, no leste.
Potencialmente, o processo diplomático que está em curso pode acabar com quase nove anos de conflito na Líbia. O envolvimento construtivo da Rússia e da Turquia é análogo ao que essas duas nações alcançaram ao forjar um acordo político para acabar com a guerra na Síria.

Indiscutivelmente, a Líbia poderá representar uma tarefa ainda mais desafiadora em comparação com a Síria. Pelo menos na Síria havia um estado nacional central e funcional com o qual construir a paz. Em contraste, na Líbia, não existe um estado nacional unificador. O conflito é mais definido como uma guerra civil arquetípica, enquanto na Síria o conflito se baseava na defesa de um Estado diante de uma agressão apoiada por estrangeiros. A tarefa de obter um acordo de paz abrangente na Líbia poderá, portanto, ser mais complicada e ilusória.

Como referiu o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia , Sergei Lavrov , esta semana:

"O Estado líbio foi bombardeado pela OTAN em 2011, e ainda estamos a enfrentar as consequências dessa aventura ilegal e criminosa, antes de tudo o povo líbio."
Podemos lembrar-nos que os EUA e os seus aliados europeus da OTAN realizaram uma campanha de bombardeamento aéreo de sete meses de Março a Outubro de 2011 na Líbia sob o pretexto falso e irrisório de organizar “uma intervenção humanitária”. Essa blitzkrieg(guerra relâmpago) assassina da OTAN resultou no linchamento brutal do líder líbio Muammar Gaddafi. O país rico em petróleo foi dominado por extremistas islâmicos e senhores da guerra, e permanece num estado de caos desde então. A Síria poderia ter ido pelo mesmo destino nefasto de mudança de regime apoiada pela OTAN, se não fosse a intervenção militar da Rússia no final de 2015 para defender o Estado devido à sua aliança de longa data.

Existe uma terceira via na Líbia? O que pode quebrar o impasse da guerra civil da Líbia?
A destruição da OTAN na Líbia teve consequências geopolíticas desastrosas. Os extremistas viajaram de lá para fazer guerra contra o estado da Síria. Esse destacamento secreto de guerrilheiros e tráfico de armas para a Síria contou com o apoio dos EUA e da Turquia. Esse canal letal aumentou bastante o número de guerras e mortes na Síria.

A Líbia, como um estado falido, tornou-se uma porta de entrada para milhões de refugiados do Médio Oriente e de África que tentavam entrar na Europa através do Mar Mediterrâneo. Centenas de milhares de pessoas morreram afogadas em barcos de má qualidade. O crime e o tráfico de pessoas aumentaram. E a Europa suportou acentuadas divisões políticas internas causadas pela desestabilização da migração interna.
Nos últimos nove anos, as potências da OTAN lavaram as mãos contra a destruição criminal da Líbia e as terríveis repercussões para a região.

A Rússia mostrou liderança louvável ao tentar reunir a Líbia por meio do envolvimento diplomático.

Como um artigo de opinião no Washington Post observou:

“Enquanto o presidente Trump gasta o seu tempo twittando insultos e ameaçando iniciar guerras no Médio Oriente, a Rússia está a preencher o vazio da diplomacia internacional. No caso da Líbia, terminar com um conflito sangrento à porta da Europa num país rico em petróleo é um grande negócio. ”

A conferência em Moscovo esta semana produziu um cessar-fogo instável. O líder da GNA, Fayez Sarrij, assinou a trégua, mas Khalifa Haftar da LNA deixou Moscovo com a sua assinatura suspensa, dizendo que queria mais tempo para considerar. No entanto uma trégua parece estar a desenhar-se.
Uma cimeira de paz de acompanhamento está a ser realizada este fim de semana em Berlim, organizada pela chanceler alemã Angela Merkel. Os dois líderes líbios devem participar, assim como a Rússia e a Turquia, os dois principais patrocinadores. Outras nações foram convidadas a participar e incluem os EUA, China, Grã-Bretanha, França e Itália. Os países árabes que apoiam diferentes facções na Líbia também deverão participar: Egipto, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (que apoiam o LNA) e Qatar (que apóia o GNA).

A Turquia teria enviado guerrilheiros sob o seu controle da Síria para o apoio do GNA. As relações entre Ancara e o líder da LNA, Haftar, são voláteis. O presidente da Turquia, Erdogan, ameaçou enviar tropas turcas para a Líbia se as forças de Haftar retomarem a sua ofensiva para tomar Trípoli.

As condições combustíveis da Líbia ainda podem explodir em guerra, uma guerra que pode tornar-se outro sangrento campo de batalha, uma guerra por procuração de potências internacionais.

No entanto, a Rússia criou um espaço diplomático para o progresso político em direcção à estabilidade e à paz no país do norte de África. Um governo de unidade nacional pode ser formado pelos lados em guerra? Não está claro se o GNA tem a estabilidade política inerente para fazer uma parceria funcionar.

Mas uma coisa é clara. A destreza diplomática da Rússia salvou a oportunidade de paz da confusão profana que a OTAN deixou para trás.

Fonte: https://www.strategic-culture.org


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

UMA SESSÃO PARLAMENTAR ESCONDIDA REVELOU AS MOTIVAÇÕES DE TRUMP NO IRAQUE

AHMAD AL-RUBAYE / AFP
O primeiro-ministro interino do Iraque, Adel Abdul-Mahdi, fez uma série de comentários a 5 de Janeiro, durante uma sessão parlamentar que recebeu surpreendentemente pouca atenção dos média. Durante a sessão, que também viu o Parlamento do Iraque aprovar a retirada de todas as tropas estrangeiras (inclusive americanas) do país, Abdul-Mahdi fez uma série de alegações sobre a preparação para a recente situação que colocou o Iraque no ponto de aumentar as tensões EUA-Irão.

Por  Whitney Webb

Os EUA estão convencidos de que o assassinato de Qassem Soleimani e a recusa em deixar o Iraque têm a ver com proteger os americanos, mas uma sessão parlamentar iraquiana pouco conhecida revela como os laços cada vez mais fortes da China com Bagdad podem estar a moldar a nova estratégia dos EUA para o Médio Oriente.

Desde que os EUA mataram o general iraniano Qassem Soleimani e o líder da milícia iraquiana Abu Mahdi al-Muhandis no início deste mês, a narrativa oficial sustentou que as suas mortes eram necessárias para evitar uma vaga de ameaças de violência contra os americanos supostamente iminente, embora o presidente Trump não tenha dito se Soleimani ou os seus aliados iraquianos representavam uma ameaça iminente, "realmente não importa".

Embora a situação entre o Irão, o Iraque e os EUA pareça ter diminuído substancialmente, pelo menos por enquanto, vale a pena rever a preparação para as recentes tensões EUA-Iraque / Irão até ao assassinato de Soleimani e Abu Mahdi al-Muhandis, a fim de entender um dos factores mais negligenciados e relevantes por trás da actual política de Trump em relação ao Iraque: impedir a China de expandir a sua presença no Médio Oriente. De facto, foi alegado que até o momento do assassinato de Soleimani estava directamente relacionado às suas funções diplomáticas no Iraque e ao seu esforço para ajudar o Iraque a garantir a sua independência do petróleo, começando com a implementação de um novo acordo massivo com a China.

Embora a retórica recente dos média tenha se concentrado na extensão da influência do Irão no Iraque, as recentes negociações da China com o Iraque - particularmente no seu sector do petróleo - são as responsáveis ​​por grande parte do que aconteceu no Iraque nos últimos meses, pelo menos segundo o primeiro-ministro do Iraque, Adel Abdul-Mahdi, que actualmente ocupa o cargo de primeiro-ministro provisório.

Grande parte da pressão exercida pelos EUA sobre o governo do Iraque em relação à China teria ocorrido secretamente e à porta fechada, mantendo fora de vista as preocupações do governo Trump sobre os crescentes laços da China com o Iraque, talvez por preocupações de que uma discussão pública poderia exacerbar o conflito da “Guerra comercial” EUA-China e comprometer os esforços para resolvê-la. No entanto, quaisquer que sejam as razões, as evidências sugerem fortemente que os EUA estão igualmente preocupados com a presença da China no Iraque, assim como a do Irão. Isso ocorre porque a China tem os meios e a capacidade de minar drasticamente não apenas o controle dos EUA sobre o sector de petróleo do Iraque, mas todo o sistema petrodólar no qual o estatuto dos EUA como superpotência financeira e militar depende directamente.

Por trás da cortina, uma narrativa diferente para as tensões Iraque-EUA

O primeiro-ministro interino do Iraque, Adel Abdul-Mahdi, fez uma série de comentários a 5 de Janeiro, durante uma sessão parlamentar que recebeu surpreendentemente pouca atenção dos média. Durante a sessão, que também viu o Parlamento do Iraque aprovar a retirada de todas as tropas estrangeiras (inclusive americanas) do país, Abdul-Mahdi fez uma série de alegações sobre a preparação para a recente situação que colocou o Iraque no ponto de aumentar as tensões EUA-Irão.

Durante essa sessão, apenas parte das declarações de Abdul-Mahdi foram transmitidas na televisão, depois que o presidente da Câmara do Iraque - Mohammed Al-Halbousi, que tem  um relacionamento próximo com Washington - solicitou que o vídeo fosse cortado. Al-Halbousi participou estranhamente da sessão parlamentar, apesar de ter sido boicotado pelos seus representantes aliados sunitas e curdos.

Secretário de Estado Pompeo, à esquerda, caminha ao lado de Al-Halbousi em Bagdá, Iraque, em 9 de janeiro de 2019. Andrew Caballero-Reynolds | Reuters

Depois do vídeo ter sido cortado, os deputados presentes escreveram os argumentos de Abdul-Mahdi, que foram entregues ao noticiário árabe Ida'at. De acordo com essa transcrição , Abdul-Mahdi afirmou que:

Foram os americanos que destruíram o país e nele causaram estragos. Eles recusaram-se a concluir a construção do sistema eléctrico e os projectos de infraestruturas. Eles negociaram a reconstrução do Iraque em troca de o Iraque desistir de 50% das suas importações de petróleo. Então, eu me recusei e decidi ir para a China e concluí um acordo importante e estratégico com ela. Hoje, Trump está a tentar cancelar este importante acordo.”

Abdul-Mahdi continuou as suas argumentações, observando que a pressão do governo Trump sobre as suas negociações e subsequentes negociações com a China aumentou substancialmente ao longo do tempo, resultando em ameaças de morte para ele e para o seu ministro da Defesa:

Depois do meu regresso da China, Trump ligou-me e pediu-me para cancelar o acordo, mas eu também recusei, e ele ameaçou [que haveria] manifestações em massa para me derrubar. De facto, as manifestações começaram e, em seguida, Trump telefonou, ameaçando em caso de não cooperação e de não responder aos seus desejos, avançar com uma terceira parte [presumidamente mercenários ou soldados dos EUA]  que teriam como alvo os manifestantes, as forças de segurança e os mataria do alto dos edifícios mais altos e da embaixada dos EUA na tentativa de me pressionar e de me submeter aos seus desejos e cancelar o acordo com a China.”

“Não respondi e enviei a minha demissão e os americanos ainda insistem até hoje em cancelar o acordo com a China. Quando o ministro da Defesa disse que aqueles que mataram os manifestantes eram terceiros, Trump ligou-me imediatamente e ameaçou-me fisicamente e ao ministro da Defesa no caso de haver mais conversas sobre esse terceiro. ”

Muito poucos meios de comunicação em inglês relataram os argumentos de Abdul-Mahdi. Tom Luongo,  analista independente sediado na Flórida  e editor do Boletim Gold Goats 'n Guns, disse ao  MintPress que as razões prováveis ​​para o "surpreendente" silêncio dos média sobre as alegações de Abdul-Mahdi existiram porque "elas nunca chegaram aos canais oficiais ... ”devido ao corte do vídeo durante a sessão parlamentar do Iraque e ao facto de que“ é muito inconveniente e os média - como Trump está a fazer o que eles querem que ele faça, ser beligerante com o Irão, protegendo os interesses de Israel por lá ”.

“Eles não vão contradizê-lo porque, se ele estiver jogando bola”, disse Luongo, antes de continuar para dizer que os média, no entanto, “se jogariam a ele em referências futuras… Se isso sair de verdade, eles a usarão contra ele no caso, dele tentar sair do Iraque. ”“ Tudo em Washington é usado como alavanca ”, disse.

Dada a falta de cobertura dos média e o corte do feed do vídeo dos argumentos completos de Abdul-Mahdi, vale ressaltar que a narrativa que ele expôs no seu discurso censurado não se encaixa apenas na linha do tempo dos acontecimentos recentes que ele discute, mas também nas tácticas conhecidas por terem sido feitas à porta fechada pelo governo Trump, particularmente depois que Mike Pompeo deixou a CIA para se tornar Secretário de Estado.

Por exemplo, a delegação de Abdul-Mahdi à China terminou a 24 de Setembro, com os protestos contra o seu governo que Trump ameaçava começar a 1 de Outubro. Relatos de um “terceiro lado” disparando contra manifestantes iraquianos foram apanhados pelos principais meios de comunicação do país a tempo, como  neste   relatório da BBC que afirmava:

Testemunhas dizem que as forças de segurança abriram fogo, mas outra fonte diz que  homens armados desconhecidos eram os responsáveis ... uma fonte em Karbala disse à BBC que um dos mortos era um guarda  num santuário xiita próximo que passava por ali. A fonte também disse que a origem dos tiros era desconhecida e  que tinha como alvo os manifestantes e as forças de segurança (ênfase adicionada)."

Nos protestos apoiados pelos EUA em outros países, como na Ucrânia em 2014, também houve testemunhas que viram evidências de um “ terceiro lado ” disparando contra manifestantes e forças de segurança.

Após seis semanas de protestos intensos, Abdul-Mahdi apresentou a sua renúncia  a 29 de Novembro,  poucos dias depois do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Iraque ter elogiado os novos acordos, incluindo o "petróleo por reconstrução", assinado com a China. Abdul-Mahdi, desde então, permaneceu como primeiro-ministro num papel de zelador até que o Parlamento decida sobre a sua substituição.

As alegações de Abdul-Mahdi sobre a pressão secreta do governo Trump são apoiadas pelo uso de tácticas semelhantes contra o Equador, onde, em Julho de 2018, uma delegação dos EUA nas Nações Unidas  ameaçou o país  com medidas comerciais punitivas e a retirada de ajuda militar se o Equador avançasse com a introdução de uma resolução da ONU para "proteger, promover e apoiar a amamentação".

O  New York Times  informou na altura que a delegação dos EUA estava a procurar promover os interesses dos fabricantes de leite para crianças. Se a delegação dos EUA está disposta a usar essa pressão sobre os países para promover a amamentação em detrimento de leite para crianças, não é necessário dizer que essa pressão escondida seria significativamente mais intensa se um recurso muito mais lucrativo, como o petróleo, estivesse envolvido.

Em relação às alegações de Abdul-Mahdi, Luongo disse ao  MintPress  que também vale a pena considerar que poderia haver alguém no governo Trump fazendo ameaças a Abdul-Mahdi, não necessariamente o próprio Trump. “O que não vou dizer directamente é que foi Trump que esteve do outro lado das ligações. A maior vantagem politica de Mahdi é culpar Trump por tudo. Poderia ter sido Mike Pompeo ou Gina Haspel que falou com Abdul-Mahdi ... Poderia ser qualquer pessoa, provavelmente seria alguém com negação plausível ... Isso [as alegações de Mahdi] parecem credíveis ... Acredito firmemente que Trump é capaz de fazer essas ameaças mas não acho que Trump faça essas ameaças directamente, mas seria absolutamente consistente com a política dos EUA.”

Luongo também argumentou que as actuais tensões entre a liderança dos EUA e do Iraque precederam o acordo de petróleo entre o Iraque e a China por várias semanas: “Tudo isso começa com o primeiro-ministro Mahdi a iniciar o processo de abertura da passagem da fronteira Iraque-Síria e que foi anunciado em Agosto. Desta forma, os ataques aéreos israelitas  aconteceram em Setembro para impedir que isso acontecesse, ataques às forças da PMU na passagem da fronteira, junto dos depósitos de munição perto de Bagdad… Isso provocou a ira iraquiana… Mahdi tentou fechar o espaço aéreo do Iraque, mas o quanto ele se pode impor é uma grande questão. ”

Quanto à vantagem de Mahdi em culpar Trump, Luongo afirmou que Mahdi “pode fazer decretos o dia inteiro, mas, na realidade, como pode ele realmente impedir os EUA ou os israelitas de fazer alguma coisa? Excepto vergonha, vergonha diplomática ... Para mim, [as reivindicações de Mahdi] parecem perfeitamente credíveis porque, durante tudo isso, Trump provavelmente está ou alguém está a mexer com [Mahdi] pela reconstrução dos campos de petróleo [no Iraque] ... Trump declarou explicitamente que "queremos o petróleo".

Como observou Luongo, o interesse de Trump nos EUA em obter uma parcela significativa da receita petrolífera do Iraque não é segredo. Em Março passado no final de uma reunião na Casa Branca, Trump  perguntou a Abdul-Mahdi  "E o petróleo?", levando Abdul-Mahdi a perguntar "O que quer dizer?". Ao qual Trump respondeu: "Bem, fizemos muito, fizemos muito por lá, gastamos biliões por lá, e muita gente tem falado sobre o petróleo”, o que foi amplamente interpretado como Trump pedindo parte da receita do petróleo do Iraque em troca dos altos custos dos EUA com a sua presença militar agora indesejada no Iraque.

Como Abdul-Mahdi rejeitou a proposta de "petróleo para a reconstrução" de Trump em favor da China, parece provável que o governo Trump tenha adoptado as tácticas da chamada "diplomacia dos gângsteres" para pressionar o governo do Iraque a aceitar o acordo de Trump, especialmente pelo facto de que o acordo da China era uma oferta muito melhor. Enquanto Trump exigiu metade da receita do petróleo do Iraque em troca da conclusão de projectos de reconstrução (segundo Abdul-Mahdi), o acordo assinado entre o Iraque e a China fará com que cerca de 20% das receitas do petróleo do Iraque vá para a China em troca de reconstrução. Além da perda potencial na receita petrolífera do Iraque, há muitas razões para o governo Trump se sentir ameaçado pelas recentes negociações da China com o Iraque.

O acordo de petróleo Iraque-China - um prelúdio para algo mais?

Quando a delegação de Abdul-Mahdi viajou para Pequim em Setembro passado, o acordo “petróleo por reconstrução” era apenas  um dos oito acordos totais  estabelecidos. Esses acordos abrangem uma variedade de áreas, incluindo a financeira, a comercial, a segurança, a reconstrução, a comunicação, a cultura, a educação e assuntos externos, além do petróleo. No entanto, o negócio do petróleo é de longe o mais significativo.

Pelo acordo, as empresas chinesas trabalharão em vários projectos de reconstrução em troca de aproximadamente 20% das exportações de petróleo do Iraque, aproximadamente 100,00 barris por dia, por um período de 20 anos. Segundo a  Al-Monitor , Abdul-Mahdi tinha o seguinte a dizer sobre o acordo: "Nós concordamos [com Pequim] em criar um fundo de investimento conjunto, que o dinheiro do petróleo financiará", acrescentando que o acordo proíbe a China de monopolizar projectos dentro do Iraque, forçando Pequim a trabalhar em cooperação com empresas internacionais.

O acordo é semelhante ao negociado entre o Iraque e a China em 2015, quando Abdul-Mahdi era ministro do petróleo do Iraque. Naquele ano, o Iraque aderiu à Iniciativa do Cinturão e Rota da China, num acordo que também envolvia a troca de petróleo por projectos de investimento, desenvolvimento e construção e como resultado viu a China premiar vários desses projectos. Numa notável semelhança com os acontecimentos recentes, esse acordo foi suspenso devido a "tensões políticas e de segurança" causadas por distúrbios e pelo aumento das actividades do ISIS no Iraque, até que Abdul-Mahdi viu o Iraque  voltar a participar novamente na iniciativa no final do ano passado, através dos acordos que o seu governo assinou com a China em Setembro passado.

O presidente chinês, Xi Jinping, à esquerda, se encontra com o primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi, à direita, em Pequim, em 23 de setembro de 2019. Lintao Zhang | AP

Notavelmente, depois das recentes tensões entre os EUA e o Iraque devido ao assassinato de Soleimani e a subsequente recusa dos EUA em remover as suas tropas do Iraque, apesar das exigências do parlamento, o Iraque anunciou silenciosamente que aumentaria drasticamente as suas exportações de petróleo para a China para  triplicar o montante  estabelecido num acordo assinado em Setembro. Dadas as recentes alegações de Abdul-Mahdi sobre as verdadeiras forças por de trás dos recentes protestos no Iraque e as ameaças de Trump contra ele estarem directamente relacionadas com as negociações com a China, a mudança parece ser um sinal não muito discreto de Abdul-Mahdi para Washington de que ele planeia aprofundar a parceria do Iraque com a China, pelo menos enquanto ele permanecer provisoriamente em funções.

A decisão do Iraque de aumentar drasticamente as suas exportações de petróleo para a China ocorreu apenas um dia depois de o governo dos EUA  ter ameaçado cortar o acesso do Iraque à sua conta do banco central, actualmente mantida no Federal Reserve Bank de Nova York, uma conta que  actualmente detém  US $ 35 mil milhões em receitas de petróleo do Iraque. A conta foi  criada depois que  os EUA invadiram e começaram a ocupar o Iraque em 2003, e o Iraque actualmente retira entre US $ 1-2 mil milhões por mês para cobrir as despesas essenciais do governo. A perda do acesso às suas receitas de petróleo armazenadas nessa conta levaria ao " colapso " do governo do Iraque, de acordo com diplomatas do governo iraquiano que conversaram com a  AFP.

Embora Trump tenha prometido publicamente repreender o Iraque pela expulsão de tropas dos EUA por meio de sanções, a ameaça de cortar o acesso do Iraque à sua conta no Federal Reserve Bank de NY foi entregue de forma privada e directa ao primeiro-ministro, acrescentando mais credibilidade às reivindicações de Abdul-Mahdi de que as tentativas mais agressivas de Trump de pressionar o governo do Iraque são feitas em particular e direccionadas ao primeiro-ministro do país.

Embora a pressão de Trump desta vez tenha sido no sentido de impedir a expulsão de tropas americanas do Iraque, as suas razões para fazê-lo também podem estar relacionadas com preocupações com o crescente apoio da China na região. De facto, enquanto Trump agora perdeu a sua parcela desejada da receitas do petróleo iraquiano (50%) para a contrapartida da China de 20%, a retirada das tropas americanas do Iraque podem ser substituídas pelas suas contrapartes chinesas também, de acordo com Tom Luongo.

"Tudo isso está relacionado com os EUA de manterem a ficção de que precisam ficar no Iraque ... Assim, a China poderá ir para lá e esse é o momento em que eles começarão com a Iniciativa do Cinturão e Rota", disse Luongo. “Isso ajudará a fortalecer o relacionamento económico entre o Iraque, Irão e a China e evita a necessidade de os americanos permanecerem por lá. Em algum momento, a China quererá activos com o fundamento de que eles vão para defender militarmente em caso de uma grande crise. Isso nos leva à próxima coisa que sabemos, que Mahdi e o embaixador chinês discutiram exactamente isso após o assassinato de Soleimani.”

De facto, de acordo com a reportagens, Zhang Yao - embaixador da China no Iraque - "transmitiu a disponibilidade de Pequim  para prestar assistência militar" caso o governo do Iraque o solicitasse logo após o assassinato de Soleimani. Yao fez a oferta um dia depois que o parlamento do Iraque votou para expulsar as tropas americanas do país. Embora actualmente não se saiba como Abdul-Mahdi respondeu à oferta, a situação provavelmente não causou pouca preocupação entre o governo Trump e o seu rápido declínio da influência no Iraque. "Pode ver o que está a chegar aqui", disse Luongo ao  MintPress  sobre a recente oferta chinesa ao Iraque: "China, Rússia e Irão estão a tentar separar o Iraque dos EUA e os EUA estão a sentirem-se muito ameaçados por isso".

A Rússia também está a desempenhar um papel no cenário actual, quando o Iraque iniciou negociações com Moscovo sobre a  possível compra de um de seus sistemas de defesa aérea em Setembro passado, no mesmo mês em que o Iraque assinou oito acordos, incluindo um sobre petróleo com a China. Assim, após a morte de Soleimani, a Rússia  novamente ofereceu os sistemas de defesa aérea ao Iraque para permitir que defendessem melhor o seu espaço aéreo. No passado, os EUA  ameaçavam  os países aliados com sanções e outras medidas se comprassem sistemas de defesa aérea russos em oposição aos fabricados por empresas americanas.

Os esforços dos EUA para conter a crescente influência e presença da China no Iraque com novas parcerias e acordos estratégicos são limitados, no entanto, os EUA  confiam cada vez mais na China como parte de sua política para o Irão, especificamente no seu objectivo de reduzir a exportação de petróleo iraniana a zero. A China continua sendo o principal importador de petróleo do Irão, mesmo depois de ter reduzido significativamente as importações de petróleo iraniano após a pressão dos EUA no ano passado. No entanto, os EUA  estão agora a tentar pressionar a China para parar de comprar completamente o petróleo iraniano ou enfrentarão sanções ao mesmo tempo que tentam sabotar privadamente o acordo de petróleo China-Iraque. É altamente improvável que a China ceda aos EUA em ambas as frentes, se houver alguma cedência, o que significa que os EUA podem ser forçados a escolher qual a frente de política que ("contenção" do Irão versus acordos de petróleo do Iraque com a China) valoriza mais nos próximos semanas e meses.

Além disso, a recente assinatura do acordo comercial da “primeira fase” com a China revelou outra faceta potencial do relacionamento cada vez mais complicado dos EUA com o sector do petróleo do Iraque, uma vez que o acordo  envolve a venda de petróleo e gás dos EUA para a China a um custo muito baixo, sugerindo que o governo Trump também pode ver o resultado do acordo Iraque-China do Iraque emergindo como um potencial concorrente dos EUA na venda de petróleo barato para a China, o maior importador de petróleo do mundo.

O petrodólar e o fantasma do Petroyuan

Nas suas declarações televisivas na semana passada após a resposta militar do Irão ao assassinato do general Soleimani executado pelos EUA, Trump insistiu que a política dos EUA para o Médio Oriente não está mais a ser dirigida pelos vastos requisitos do petróleo dos EUA. Ele  afirmou concretamente que:

Nos últimos três anos, sob minha liderança, a nossa economia está mais forte do que nunca e os Estados Unidos alcançaram a independência energética. Essas realizações históricas mudaram as nossas prioridades estratégicas. São realizações que ninguém pensou serem possíveis. E as opções do Médio Oriente tornaram-se disponíveis. Agora somos o produtor número um de petróleo e gás natural em qualquer lugar do mundo. Somos independentes e não precisamos de petróleo do Médio Oriente. (ênfase adicionada)"

No entanto, dada a centralidade do recente acordo petrolífero Iraque-China em orientar alguns dos recentes movimentos políticos do governo Trump no Médio Oriente, isso parece não ser o caso. A distinção pode estar no facto de que, embora os EUA agora sejam menos dependentes das importações de petróleo do Médio Oriente, ainda é necessário continuar a dominar a maneira como o petróleo é comercializado e vendido nos mercados internacionais, a fim de manter o seu estatuto como uma  superpotência militar e financeira global.

De facto, mesmo que os EUA estejam a importar menos petróleo do Médio Oriente, o sistema petrodólar - forjado pela primeira vez na década de 1970 - exige que os EUA mantenham controle suficiente sobre o comércio global de petróleo, para que os maiores exportadores de petróleo do mundo, o Iraque entre eles, continuem a vender o seu petróleo em dólares. Se o Iraque vendesse petróleo numa outra moeda ou trocasse petróleo por serviços, como planeia fazer com a China com o acordo recentemente fechado, uma parcela significativa do petróleo iraquiano deixaria de gerar procura por dólares, violando o princípio fundamental do sistema petrodólar.

Representantes chineses falam com o pessoal de defesa durante uma exposição de armas organizada pelo Ministério da Defesa do Iraque em Bagdad, Março de 2017. Karim Kadim | AP

Como Kei Pritsker e Cale Holmes observaram num artigo do MintPress no ano  passado :

O argumento do fenómeno petrodólar é que, enquanto os países precisarem de petróleo, eles precisarão do dólar. Enquanto os países exigirem dólares, os EUA poderão continuar endividados em grande quantidade para financiar a sua rede de bases militares globais, resgates de Wall Street, mísseis nucleares e cortes de impostos para os ricos.”

Assim, o uso do petrodólar criou um sistema pelo qual o controle americano das vendas de petróleo dos maiores exportadores de petróleo é necessário, não apenas para sustentar o dólar, mas também para apoiar a sua presença militar global. Portanto, não surpreende que a questão da presença de tropas dos EUA no Iraque e a questão da pressão do Iraque pela independência do petróleo contra os desejos dos EUA tenham se interligado. Notavelmente, um dos arquitectos do sistema petrodólar e o homem que descreveu os soldados americanos como "animais burros e estúpidos para serem usados ​​como peões na política externa", o ex-secretário de Estado Henry Kissinger,  aconselhou Trump  e informou sobre a sua política na China desde 2016.

Essa opinião também foi expressa pelo economista Michael Hudson,  que recentemente observou que o acesso dos EUA ao petróleo, à dolarização e à estratégia militar dos EUA estão intrinsecamente interligados e que a recente política do Iraque de Trump tem como objectivo "aumentar a presença da América no Iraque para manter o controle das reservas de petróleo da região", ”e, como Hudson diz,“ apoiar as tropas Wahabi da Arábia Saudita (ISIS, Al Qaeda no Iraque, Al Nusra e outras divisões que são realmente a legião estrangeira da América) para apoiar o controle dos EUA ao petróleo no Médio Oriente como um suporte ao dólar dos EUA."

Hudson afirma ainda que foram os esforços de Qassem Soleimani para promover a independência do petróleo do Iraque às custas das ambições imperiais dos EUA que serviram a um dos principais motivos por trás de seu assassinato.

Os EUA opuseram-se ao general Suleimani, acima de tudo, porque ele estava a lutar contra o ISIS e outros terroristas apoiados pelos EUA na tentativa de romper a Síria e substituir o regime de Assad por um conjunto de líderes locais em conformidade com os EUA - o velho plano britânico de "dividir e conquistar". Na ocasião, Suleimani havia cooperado com as tropas americanas na luta contra grupos ISIS que ficaram "fora de linha", o que significa a linha do partido dos EUA. Mas  todas as indicações são de que ele estava no Iraque para trabalhar com o governo que procurava recuperar o controle dos campos de petróleo  que o presidente Trump se gabava tão alto de agarrar. (ênfase adicionada)"

Hudson acrescenta que “… os neoconservadores dos EUA temiam o plano de Suleimani de ajudar o Iraque a controlar o petróleo e resistir aos ataques terroristas apoiados pelos EUA e pela Arábia Saudita no Iraque. Foi isso que fez o assassinato dele ser um impulso imediato.

Enquanto outros factores - como a  pressão de aliados dos EUA  como Israel - também desempenharam um papel importante na decisão de matar Soleimani, a decisão de assassiná-lo em solo iraquiano poucas horas antes de ele se encontrar com Abdul-Mahdi com funções diplomáticas sugere que as tensões subjacentes causadas pela pressão do Iraque pela independência do petróleo e o seu acordo com a China desempenharam um factor no momento de seu assassinato. Também serviu como uma ameaça para Abdul-Mahdi, que afirmou que os EUA ameaçaram mata-lo a ele e ao seu ministro da Defesa apenas algumas semanas antes devido às tensões directamente relacionadas ao impulso pela independência do sector petrolífero do Iraque em relação aos EUA.

Parece que o papel sempre presente do petrodólar na orientação da política dos EUA no Médio Oriente permanece inalterado. O petrodólar tem sido um factor determinante da política dos EUA em relação ao Iraque, pois um dos principais factores para a invasão do Iraque em 2003 foi a decisão de Saddam Hussein de vender petróleo iraquiano em euros, em vez de dólares a partir de 2000. Apenas algumas semanas antes do início da invasão, Hussein vangloriava-se de que a conta das receitas petrolíferas do Iraque estava a obter uma taxa de juros mais alta do que aquela que teria sido se continuasse a vender o seu petróleo em dólares, um sinal aparente para outros exportadores de petróleo de que o sistema petrodólar serve apenas para beneficiar os Estados Unidos.

Além dos esforços actuais para impedir a independência do petróleo do Iraque e manter o seu comércio de petróleo alinhado com os EUA, o facto de os EUA agora procurarem limitar o crescente papel da China no sector de petróleo do Iraque também está directamente relacionado aos esforços publicamente conhecidos da China para criar o seu próprio concorrente directo do petrodólar, o petroyuan.

Desde 2017 que a China faz os seus planos para criar o petroyuan - um concorrente direto do petrodólar - sem qualquer segredo, principalmente depois que a China eclipsou os EUA como o maior importador mundial de petróleo. Como a  CNBC  observou  na época:

A nova estratégia é conseguir a ajuda dos mercados de energia: Pequim pode introduzir uma nova maneira de precificar o petróleo nos próximos meses - mas, diferentemente dos contratos baseados no  dólar americano  que actualmente dominam os mercados globais, esse benchmark usaria a moeda da China. Se houver uma adopção generalizada, como esperam os chineses, isso marcará um passo para desafiar o estatuto do dólar como a moeda mais poderosa do mundo ... O plano é precificar o petróleo em  yuan  usando um contrato futuro com base no ouro em Xangai, mas o caminho será longo e árduo. "

Se os EUA continuam no seu caminho actual e empurram o Iraque ainda mais para os braços da China e de outros estados rivais dos EUA, não é preciso dizer que o Iraque - agora parte da Iniciativa Cinturão e Rota da China - poderá em breve favorecer um sistema petroyuan em detrimento de um sistema petrodólar, particularmente porque o actual governo dos EUA ameaça manter a conta do banco central do Iraque sob ameaça por seguir políticas que Washington considera desfavoráveis.

Também poderia explicar por que o presidente Trump está tão preocupado com o crescente apoio da China no Iraque, pois corre o risco de causar não apenas o fim da hegemonia militar dos EUA no país, mas também pode levar a grandes problemas para o sistema petrodólar e a posição dos EUA como um poder financeiro global. A política de Trump que visa interromper os crescentes laços da China e do Iraque está claramente a ter o efeito oposto, mostrando que a "diplomacia de gângster" deste governo serve apenas para tornar as alternativas oferecidas por países como a China e a Rússia ainda mais atraentes.


Fonte: mintpressnews

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

QUEM ATINGIU O VOO 752 DAS LINHAS AÉREAS INTERNACIONAIS DA UCRÂNIA?

A alegação de que o major-general Qassem Soleimani era um "terrorista" numa missão para realizar um ataque "iminente" que mataria centenas de americanos acabou por ser uma mentira, então por que razão alguém deveria acreditar em algo relacionado a desenvolvimentos recentes no Irão e Iraque? Para ter certeza, o voo 752 das linhas aéreas internacionais da Ucrânia partiu do Aeroporto Internacional de Teerão Imam Khomeini na manhã de 8 de Janeiro com 176 passageiros e tripulantes a bordo tendo sido abatido pelas defesas aéreas iranianas, algo que o governo da República Islâmica admitiu, mas pode haver consideravelmente mais na história envolvendo a guerra cibernética realizada pelos Estados Unidos e possivelmente pelos governos de Israel.

Por Philip M. Giraldi

Para ter a certeza, as defesas aéreas iranianas estavam em estado de alerta temendo um ataque americano na véspera do assassinato de Soleimani a 3 de Janeiro pelo governo dos EUA seguido por um ataque com mísseis do Irão dirigida contra duas bases norte-americanas no Iraque. Apesar da tensão e da escalada, o governo iraniano não fechou o espaço aéreo do país. Os voos civis de passageiros ainda estavam partindo e chegando a Teerão, quase certamente um erro de análise por parte das autoridades aeroportuárias. Inexplicavelmente, as aeronaves civis continuaram decolando e pousando mesmo depois que o voo 752 foi abatido.

Cinquenta e sete dos passageiros do voo eram canadianos descendentes de iranianos, levando o primeiro-ministro Justin Trudeau a apontar o dedo tanto para o governo iraniano pela sua falta de cuidado quanto também para Washington, observando com raiva que o governo Trump havia deliberadamente e imprudentemente procurado "aumentar as tensões ”com o Irão por meio de um ataque próximo ao aeroporto de Bagdad, sem levar em consideração o impacto sobre os viajantes e outros civis da região.

O que parece ter sido um caso de má análise e erros humanos, no entanto, inclui alguns elementos que ainda precisam ser explicados. O operador de mísseis iraniano sofreu um considerável "bloqueio" e o transponder de aviões desligou-se e parou de transmitir vários minutos antes do lançamento dos mísseis. Também houve problemas com a rede de comunicação do comando de defesa aérea, que podem ter sido relacionados.

O bloqueio electrónico proveniente de uma fonte desconhecida significava que o sistema de defesa aérea era colocado em operação manual, contando com a intervenção humana para o lançamento. O papel humano significava que um operador tinha que fazer uma análise rápida numa situação de pressão na qual ele tinha apenas alguns momentos para reagir. O desligamento do transponder, que teria automaticamente sinalizado ao operador e ao electrónico Tor que o avião era civil, em vez disso, indicou automaticamente que era hostil. O operador, tendo sido particularmente informado sobre a possibilidade de entrada de mísseis de cruzeiro americanos, foi demitido.

Os dois mísseis que derrubaram o avião vieram de um sistema de fabrico russo designado SA-15 pela OTAN e chamado Tor pelos russos. Os seus oito mísseis são normalmente montados num veículo rastreado. O sistema inclui um radar para detectar e rastrear alvos, bem como um sistema de lançamento independente, que inclui uma funcionalidade do sistema Identification Friend or Foe (IFF) capaz de ler sinais de chamada e sinais de transponder para evitar acidentes. Dado o que aconteceu naquela manhã em Teerão, é plausível supor que algo ou alguém interferiu deliberadamente nas defesas aéreas iranianas e no transponder do avião, possivelmente como parte de uma tentativa de criar um acidente de aviação que seria atribuído ao governo iraniano.

O sistema de defesa SA-15 Tor usado pelo Irão tem uma grande vulnerabilidade. Pode ser hackeado ou "falsificado", permitindo que um invasor se faça passar por um utilizador legítimo e assuma o controle. A Marinha e a Força Aérea dos Estados Unidos desenvolveram tecnologias "que podem enganar os sistemas de radar inimigos com alvos falsos e enganosamente em movimento". Enganar o sistema também significa enganar o operador. O The Guardian também relatou de  maneira independente como as forças armadas dos Estados Unidos vêm desenvolvendo sistemas que podem alterar à distância os misseis electrónicos e os seus alvos disponíveis no Irão.

A mesma tecnologia pode, é claro, ser usada para alterar ou até mascarar o transponder num avião civil de maneira a enviar informações falsas sobre identidade e localização. Os Estados Unidos têm a capacidade de guerra cibernética e electrónica para atolar e alterar sinais relacionados aos transponders de aviões e às defesas aéreas iranianas. Israel presumivelmente tem a mesma capacidade. Joe Quinn, da Sott.net, também observa uma história interessante sobre as fotos e vídeos que apareceram no New York Times e em outros lugares, mostrando o lançamento de mísseis iranianos, o impacto com o avião e os restos após o acidente, para incluir os restos dos mísseis. Eles apareceram a 9 de Janeiro, numa conta do Instagram chamada ' Rich Kids of Tehran '. Quinn pergunta como o Rich Kids passou a ser “num conjunto habitacional de baixos rendimentos na periferia da cidade de [perto do aeroporto] às 6 horas da manhã de 8 de Janeiro com câmaras apontou para a parte direita do céu a tempo de captura um míssil atingindo um avião de passageiros ucraniano ...? ”

Junto com Rich Kids e a possibilidade de guerra electrónica tudo isso sugere um acontecimento premeditado e cuidadosamente planeado, do qual o assassinato de Soleimani era apenas uma parte. Houve tumultos no Irão após o derrube do avião, culpando o governo pela sua inaptidão.

Algumas pessoas na rua estão claramente a pedir o objectivo há muito procurado pelos Estados Unidos e Israel, ou seja, "mudança de regime". Se não haver mais nada, o Irão, que foi amplamente visto como vítima do assassinato de Soleimani, está a ser retratado. em grande parte nos média internacional, pouco mais que outro actor sem princípios, com sangue nas mãos. Ainda há muito a explicar sobre a queda do voo 752 das linhas internacionais aéreas da Ucrânia.



Este artigo foi publicado originalmente no American Herald Tribune.

Philip M. Giraldi é um ex-especialista em contra-terrorismo da CIA e oficial de inteligência militar que serviu dezanove anos no exterior na Turquia, Itália, Alemanha e Espanha. Ele foi o chefe de base da CIA para as Olimpíadas de Barcelona em 1992 e foi um dos primeiros americanos a entrar no Afeganistão em Dezembro de 2001. Phil é director executivo do Council for the National Interest, um grupo de defesa de Washington que procura incentivar e promover uma política externa dos EUA no Médio Oriente que seja consistente com os valores e interesses americanos. Ele é um colaborador frequente do Global Research.



TRUMP DÁ O MÉDIO ORIENTE À CHINA E À RÚSSIA - CONSEQUÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS?

Pela série de acções nos últimos meses no Iraque e no Médio Oriente, Washington forçou uma mudança estratégica em direcção à China e, em certa medida, à Rússia, afastando-se dos Estados Unidos. Se os acontecimentos continuarem na trajectória actual, pode muito bem ser a principal razão pela qual Washington apoiou a desestabilização de Assad na Síria, para bloquear um gasoduto planeado pelo Irão-Iraque-Síria, que agora acontecerá, a menos que Washington inicie uma política de terra queimada na região. É isso a que podemos chamar de consequências não intencionais.

Por F. William Engdahl

Se a natureza abomina o vácuo, o mesmo acontece com a geopolítica. Quando meses atrás o presidente Trump anunciou planos de retirar as tropas americanas da Síria e do Médio Oriente em geral, a Rússia e especialmente a China começaram silenciosamente a intensificar os contactos com os principais estados da região.

O envolvimento da China com o desenvolvimento do petróleo iraquiano e outros projectos de infraestruturas, apesar de grandes, foram significativamente interrompido pela ocupação do ISIS em cerca de um terço do território iraquiano. Em Setembro de 2019, Washington exigiu que o Iraque pagasse pela conclusão dos principais projectos de infraestrutura destruídos pela guerra do ISIS - uma guerra em que Washington e Ancara, Israel e Arábia Saudita desempenharam o papel oculto principal - dando ao governo dos EUA 50% do petróleo iraquiano em receitas, uma exigência ultrajante para colocá-lo educadamente.

O pivot Iraque China

O Iraque recusou. Em vez disso, o primeiro-ministro iraquiano Adel Abdul-Mahdi foi a Pequim como chefe de uma delegação de 55 membros para discutir o envolvimento da China na reconstrução do Iraque. Essa visita não passou despercebida em Washington. Mesmo antes disso, os laços entre Iraque e China eram significativos. A China era o principal parceiro comercial do Iraque e o Iraque era a terceira principal fonte de petróleo da China, depois da Arábia Saudita e da Rússia. Em Abril de 2019, em Bagdad, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Lee Joon, disse que a China estava pronta para contribuir para a reconstrução do Iraque.

Para Abdul-Mahdi, a viagem a Pequim foi um grande sucesso; ele chamou de "salto quântico" nas relações dos dois países. A visita teve a assinatura de oito memorandos de entendimento abrangentes (MoUs), um contrato-quadro de crédito e o anúncio de planos para o Iraque para se juntar à Iniciativa do Cinturão e Rota da China (ICR). Incluiu o envolvimento chinês na reconstrução de infra-estruturas do Iraque e no desenvolvimento de campos de petróleo iraquianos. Para ambos os países, um aparente "vencedor-vencedor", como os chineses gostam de dizer .

Poucos dias depois das negociações do primeiro-ministro Abdul-Mahdi em Pequim, começaram os protestos contra a corrupção e as políticas económicas do governo iraquiano, liderados por vozes da oposição para que Abdul-Mahdi renunciasse. A Reuters testemunhou atiradores atirando cuidadosamente violentos disparos contra os manifestantes, dando a impressão de repressão do governo, da  mesma forma que a CIA fez em Maidan, em Kiev, em Fevereiro de 2014, ou no Cairo, em 2011.

Actualmente, existem fortes evidências de que as negociações na China e o momento dos protestos espontâneos de Outubro de 2019 contra o governo Abdul-Mahdi estavam conectados. A administração Trump é o link. De acordo com um relatório de Federico Pieraccini, “Abdul-Medhi fez um discurso no Parlamento falando sobre como os americanos haviam arruinado o país e agora recusavam-se a concluir projectos de infraestruturas e redes de electricidade, a menos que prometessem 50% da receita do petróleo, o que Abdul-Mehdi recusou. Ele então cita secções do discurso de Abdul-Mahdi traduzidas do árabe: “Foi por isso que visitei a China e assinei um importante acordo com eles para realizar a construção. Ao retornar, Trump ligou-me para pedir que eu rejeitasse esse contrato. Quando eu recusei, ele ameaçou desencadear enormes manifestações contra mim que acabariam com a minha liderança. Grandes manifestações contra mim se materializaram devidamente e Trump telefonou-me novamente para ameaçar que, se eu não cumprisse as suas exigências, ele teria atiradores da marinha em prédios altos tendo como alvo manifestantes e pessoal de segurança para me pressionar. Recusei-me novamente e entreguei a minha demissão. Até hoje, os americanos insistem para que rescindamos o nosso acordo com os chineses."

Agora, o assassinato dos Estados Unidos do major-general iraniano Qassem Soleimani, quando ele chegou em Bagdad numa missão de mediação com a Arábia Saudita via Abdul-Mahdi, lançou toda a região num caos político em meio de discussões sobre uma possível Terceira Guerra Mundial. A suave retaliação iraniana por mísseis disparados contra bases americanas no Iraque e a admissão surpresa de Teerão de que eles acidentalmente derrubaram uma companhia aérea comercial ucraniana como se tivessem deixado Teerão, tudo no meio de relatos de que Trump e Rouhani estavam em conversas secretas de canal para acalmar as coisas, deixa muitos com a pulga atrás da orelha sobre o que realmente está a acontecer.

Estradas de "seda" silenciosas 

Uma coisa está clara. Pequim está analisando as suas perspectivas, juntamente com a Rússia, para substituir o domínio da política iraquiana que Washington mantém desde a guerra de ocupação de 2003. O OilPrice.com informa que, a partir de Outubro, logo após as bem-sucedidas negociações de Abdul-Mahdi em Pequim, o Iraque começou a exportar 100.000 barris por dia (bpd) de petróleo bruto para a China como parte do acordo de 20 anos de petróleo por infraestruturas acordado entre os dois países. De acordo com fontes do ministério do petróleo iraquiano, a China aumentará a sua influência no Iraque, começando com investimentos em petróleo e gás e, a partir daí, a construir infraestruturas, incluindo fábricas e ferrovias, usando empresas e funcionários chineses, além de mão-de-obra iraquiana. As fábricas construídas  na China usarão as mesmas linhas e estruturas de montagem para serem integradas em fábricas similares na China.

O vice-presidente do Irão, Eshaq Jahangiri, anunciou que o Irão assinou um contrato com a China para implementar um projecto para electrificar a principal ferrovia de 900 quilómetros que liga Teerão à cidade de Mashhad, no nordeste, perto da fronteira com o Turcomenistão e o Afeganistão. Jahangiri acrescentou que também há planos para estabelecer uma linha de comboios de alta velocidade Teerão-Qom-Isfahan e estendê-la até ao noroeste através de Tabriz. A OilPrice observa: “Tabriz, lar de vários locais importantes relacionados com o petróleo, gás, petroquímica, e o ponto de partida do gasoduto Tabriz-Ankara, será um ponto de articulação da Nova Rota da Seda, com 2.300 quilómetros que liga Urumqi (a capital da província de Xinjiang, oeste da China), a Teerão, e conectando o Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão e Turquemenistão ao longo do caminho e, em seguida, via Turquia para a Europa. Uma vez que os planos para isso estejam em progressos substanciais, então a China vai estender as ligações de transporte para o Iraque para o Ocidente.”

Além disso, de acordo com Louay al-Khateeb, ministro da electricidade do Iraque, “a China é a nossa principal opção como parceira estratégica a longo prazo… Começamos com uma estrutura financeira de US $ 10 mil milhões para uma quantidade limitada de petróleo para financiar alguns projectos de infraestruturas… [mas ] O financiamento chinês tende a aumentar com a crescente produção de petróleo do Iraque. ”Ou seja, quanto mais a China extrair o petróleo iraquiano, mais projectos iraquianos poderá financiar. Hoje, o Iraque depende do Irão para que o gás atenda aos seus geradores eléctricos devido à falta de infraestrutura de gás. A China diz  que vai mudar isso.

Além disso, a fonte da indústria petrolífera afirma que a Rússia e a China estão a preparar silenciosamente o terreno para relançar o gasoduto Irão-Iraque-Síria do imenso campo de gás do Irão, South Pars, que partilha com o Qatar. Uma guerra por procuração apoiada pelos EUA começou contra Bashar al-Assad, na Síria, em 2011, logo depois que ele assinou um acordo com o Irão e o Iraque para construir o oleoduto, rejeitando uma proposta anterior do Qatar para uma rota alternativa. A Turquia, a Arábia Saudita e o Qatar investiram mil milhões de fundos secretos para financiar grupos terroristas como a Al Qaeda e mais tarde o ISIS, num esforço vã  para derrubar Assad.

A China não está sozinha nos seus esforços no Iraque e no Médio Oriente, pois a política externa americana irregular e imprevisível afasta ex-aliados dos EUA. A Rússia, que acabou de intermediar um cessar-fogo na Líbia junto com o turco Erdogan, ofereceu apenas a venda do seu avançado sistema de defesa aérea S-400 Triumf para o Iraque, uma oferta que seria impensável até há semanas atrás. Com os parlamentares iraquianos votando para exigir que todas as tropas estrangeiras, incluindo EUA e Irão, deixem o Iraque após o descarado assassinato de Soleimani em Bagdad, é possível que Bagdad aceite a oferta neste momento, apesar dos protestos de Washington. Arábia Saudita, Qatar, Argélia, Marrocos e Egipto, todos discutiram com a Rússia nos últimos meses para comprar o sistema de defesa russo, considerado o mais eficaz do mundo. A Turquia já comprou.

Antes do assassinato de Soleimani, nos Estados Unidos, havia numerosos esforços de retaguarda para as detenções nas caras guerras que ocorreram em toda a região desde a Primavera Árabe, iniciada pelos EUA, entre a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irão e Iraque. A Rússia e a China têm desempenhado, de diferentes maneiras, um papel fundamental na mudança das tensões geopolíticas. Nesse momento, a credibilidade de Washington como qualquer parceiro honesto é efectivamente zero, se não menos.

A calma temporária após a admissão do Irão em derrubar o avião ucraniano de forma alguma sugere que Washington irá ficar sossegado. Trump e o seu secretário de Defesa Esper rejeitaram desafiadoramente o pedido para retirar as tropas americanas do Iraque. O presidente dos EUA acabou de twittar o seu apoio a renovados protestos contra o governo do Irão, em persa. Claramente, estamos enfrentando alguns problemas desagradáveis ​​no Médio Oriente, enquanto Washington tenta lidar com as consequências não intencionais das suas recentes acções no Médio Oriente.

*F. William Engdahl é consultor e professor de risco estratégico, é formado em política pela Universidade de Princeton e é um autor best-seller de petróleo e geopolítica, exclusivamente para a revista on-line  “New Eastern Outlook”,  onde este artigo foi publicado originalmente. Ele é investigador associado do Center for Research on Globalization.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O PROJECTO DE INDEPENDÊNCIA DA ESCÓCIA



Por Johanna Ross

Na terça-feira, Boris Johnson enviou uma carta a Nicola Sturgeon, rejeitando completamente o seu pedido de transferência de poderes para o parlamento escocês para convocar um segundo referendo sobre independência. Dizia:

“O governo do Reino Unido continuará a defender a decisão democrática do povo escocês e a promessa que lhe fez. Por esse motivo, não posso concordar com nenhum pedido de transferência de poder que levaria a futuros referendos de independência. ”

A promessa a que Johnson se refere, é claro, é a de Nicola Sturgeon em 2014, quando disse que o referendo da independência seria de uma votação só numa geração. O que o Primeiro Ministro não reconhece, no entanto, é que um argumento dessa natureza não é juridicamente vinculativo, assim como os argumentos de Boris Johnson de que o Brexit aconteceria até 31 de Outubro do ano passado 'aconteça o que acontecer'. Além disso, as circunstâncias em que esse voto ocorreu foram completamente diferentes. Naquele momento, não havia Brexit no horizonte, muito menos um referendo sobre o assunto. E, ironicamente, um dos principais pontos levantados pela campanha 'Não', foi que o futuro da Escócia na UE poderia ser comprometido se não votasse a permanência no Reino Unido.

A primeiro-ministro escocês Nicola Sturgeon, por sua vez, respondeu à carta afirmando que a posição do primeiro-ministro era 'insustentável e derrotista' e que isso apenas aumentaria o apoio à independência. E, embora tenha indicado que o SNP apresentaria os seus planos para os "próximos passos" após a carta de Johnson, ela não deu nenhum detalhe sobre o que eles poderiam representar. O que está claro, no entanto, é que tentar convencer Westminster da necessidade de outro referendo é uma tarefa infrutífera. Naturalmente, Sturgeon está empenhada em procurar a independência pacificamente (ao contrário da situação na Catalunha) e, o mais importante, legalmente, mas não podemos esquecer as circunstâncias em que a União foi formada - a Escócia foi tomada à força e, desde então, não governa lado a lado da Inglaterra, mas foi governada.

De fato, enquanto escrevo, há actualmente um projecto de lei com a Câmara dos Lordes, que visa tornar inconstitucional um segundo referendo de independência, a menos que uma série de condições não razoáveis ​​sejam atendidas. O projecto de lei intitulado 'Projecto de critérios de referendo' estipularia que o seguinte se aplicaria a qualquer referendo futuro:

1) Uma votação na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns

2) O número de deputados ou Lords que votam a favor de um referendo DEVE ser igual a dois terços ou mais em AMBAS AS CASAS.

3) Se um referendo ocorrer, 55% do eleitorado registado deve votar nele para que seja válido.

4) 60% devem votar pela independência para que seja válida.

A fim de buscar a independência, portanto, a Escócia precisa pensar fora da caixa (particularmente como tudo o que está a solicitar inicialmente, é outro referendo, não independência absoluta). Em vez de operar dentro dos limites da lei do Reino Unido, deveria recorrer ao direito internacional e seguir o exemplo de outras repúblicas separatistas, como o Kosovo, por exemplo. Quando o Kosovo se separou da Sérvia em 2008, isso foi feito sem o acordo de Belgrado. E embora os EUA e o Reino Unido tenham argumentado na época que sua secessão não fornecia um precedente legal devido às circunstâncias únicas dos conflitos étnicos nos quais o Kosovo se encontrava, desencadeou um debate desde então sobre se outros estados que podem seguir o exemplo da Sérvia. Foi dito pelo professor Christopher Greenwood, ex-juiz do Tribunal Internacional de Justiça que de facto:

“Tudo o que os Estados fazem constitui um precedente para o futuro, porque a natureza do direito internacional consuetudinário é que ele deriva da prática do Estado e da afirmação pelos Estados de um direito legal ou do reconhecimento de uma obrigação legal”.

E aqui está o ponto.

É claro que o caso escocês difere do Kosovo, mas cada caso de secessão teria, por padrão, as suas próprias circunstâncias específicas. Assim como o caso do Kosovo foi único, o caso dos escoceses também. Portanto, é necessária uma nova abordagem. A Escócia tem a sua própria história como país independente por centenas de anos antes da União, por exemplo. É necessário aplicar uma nova maneira de pensar para descobrir o futuro da Escócia. Será uma perda de tempo tentar estabelecer a independência dentro dos parâmetros da legislação nacional do Reino Unido. É hora de entender que, se as regras não se encaixarem, elas devem ser reescritas.

Este artigo foi publicado originalmente no InfoBrics.

Johanna Ross é uma jornalista sediada em Edimburgo, Escócia.

sábado, 4 de janeiro de 2020

TENSÃO AUMENTA NO MÉDIO ORIENTE MAS UMA GUERRA NÃO ESTÁ PREVISTA

A administração Trump pode estar rodeada de falcões, mas Trump não é um deles, além disso tem sido bastante contido no que diz respeito a desencadear guerras, para mais a aproximação de eleições nos EUA desaconselhariam qualquer início de guerra mas uma acção musculada como este ataque pode ser bem vista por algum eleitorado nos EUA que Trump queira captar.

Por Paulo Ramires

A tensão no Médio Oriente ganhou novos contornos com o assassinato do general Qasssem Soleimani, comandante da força de elite iraniana al-Quds quando este deixava o aeroporto internacional de Bagdad. Com ele morreu Abu Mehdi al-Muhandis, o número dois da coligação de grupos paramilitares pró-iranianos no Iraque conhecidos como Mobilização Popular (Hachd al-Chaabi) e outras seis pessoas. O ataque ocorreu três dias depois de um ataque à embaixada dos EUA. O ataque suscitou preocupações e reacções nos outros quatro membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas e com o Irão a prometer vingança por este ataque. Mas levarão estas acções a uma guerra entre Washington e Teerão? Muito dificilmente haverá uma guerra entre Washington e Teerão em termos clássicos até porque Donald Trump avisou já que não quer nenhuma guerra com o Irão. Seria de facto uma imprudência muito grande se tal viesse a acontecer, porque isso implicaria o envolvimento de outros países do Médio Oriente e de fora desta região como a Rússia e a China, que fizeram recentemente manobras militares na região com o Irão e que têm interesses para serem assegurados. 

Ao contrário do Iraque, o Irão é um país mais forte, populoso e geopoliticamente mais relevante contando com 82 milhões de pessoas ao contrário do Iraque que em 2003 contava apenas com 23 milhões, para além disso o Irão detém aliados na região e fora dela enquanto os EUA neste aspecto não tem a mesma capacidade de mobilizar outros países como tiveram na altura da guerra do Iraque. Qualquer medida militar de grande envergadura que os EUA queiram fazer tem hoje de ser mais bem ponderada do que antes. Uma guerra com o Irão é altamente improvável pelo impacto que teria nos mercados financeiros e na economia global, ocupando o Irão duas importantes zonas de mar cruciais para o tráfico marítimo como são o Golfe Pérsico e o Estreito de Ormuz que permite a ligação dos produtores de petróleo e o resto do mundo, além de partilhar fronteiras com vários países onde por exemplo os EUA já intervieram ou intervêm. 

Uma possível guerra com o Irão colocaria também os interesses regionais dos EUA em causa. Estima-se que o Irão possua mais de meio milhão de efectivos militares distribuídos pelo exército, marinha, força aérea, Guarda Revolucionária Islâmica e outros grupos paramilitares. O Irão também possui misseis balísticos de médio alcance capaz de alcançar Israel, Arábia Saudita, outros estados do golfo, bases militares americanas na região e mesmo países europeus. Uma intervenção militar no Irão exigiria uma logística complexa que implicaria 120 000 militares segundo analistas. Os EUA teriam de contar com a oposição de vários próxies no Médio Oriente como é o caso do Hezbollah que combate Israel ou os Houthis do Iémen que lutam contra a Arábia Saudita e que estariam dispostos a cometerem actos de sabotagem em posições chave como o Estreito de Ormuz. Os EUA teriam de lidar com a oposição da China, Rússia e provavelmente de outros países. Uma guerra com o Irão levaria ao envolvimento de vários outros países como a Turquia e a India. Isto não quer dizer que várias crises não possam ocorrer sendo mesmo provável que ocorram.

Não menos relevante seria também necessário saber-se até onde o exército norte-americano estaria disposto a participar num confronto com o Irão onde os aliados participantes seriam bem poucos. A administração Trump pode estar rodeada de falcões, mas Trump não é um deles, além disso tem sido bastante contido no que diz respeito a desencadear guerras, para mais a aproximação de eleições nos EUA desaconselhariam qualquer início de guerra mas uma acção musculada como este ataque pode ser bem vista por algum eleitorado nos EUA que Trump queira captar.

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