ALBANESE PEDE QUE SE TRAVE "PRIMEIRO GENOCÍDIO DO SÉCULO": "PERANTE 17 MIL CRIANÇAS MORTAS EM GAZA, O QUE FEZ A UE?"
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domingo, 6 de outubro de 2024

ALBANESE PEDE QUE SE TRAVE "PRIMEIRO GENOCÍDIO DO SÉCULO": "PERANTE 17 MIL CRIANÇAS MORTAS EM GAZA, O QUE FEZ A UE?"

Advogada italiana de 47 anos, a relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados, Francesca Albanese, de visita a Lisboa e Coimbra, denuncia o que diz ser um “genocídio”, crítica os europeus, diz que Portugal ainda tem muito por fazer e considera que “Gaza já não existe, é inabitável”


Por Ricardo Alexandre

Uma vez que me disse que tem estado a acompanhar os últimos desenvolvimentos, a minha primeira pergunta é precisamente, quais são os últimos desenvolvimentos no terreno?

Penso que, no último ano, mas também nos últimos dois anos e meio, enquanto Relator Especial para os Territórios Palestinianos Ocupados, encarregada pelas Nações Unidas de documentar e denunciar as violações do direito internacional nos Territórios Ocupados, sinto-me como uma Cassandra. Durante anos, este mandato, inclusive através da minha voz, denunciou que a situação estava a agravar-se. As violações sistemáticas e generalizadas do direito internacional que ocorrem principalmente por parte das forças israelitas e dos colonos, liderados por um governo de coligação cada vez mais extremista em Israel, estavam a conduzir a uma situação insustentável que iria explodir. Dissemo-lo uma e outra vez, dissemo-lo muitas vezes, juntamente com os palestinianos e as organizações de defesa dos direitos humanos. Depois aconteceu o dia 7 de Outubro. E o genocídio de 42.000 pessoas, pelo menos, em Gaza, deve ser lido em conjunto com os quase 600 palestinianos mortos na Cisjordânia. E agora isto está a escalar para um conflito regional que era inteiramente previsível. Nada na caixa de ferramentas diplomáticas foi utilizado para salvar vidas inocentes na Palestina e em Israel ou na região, e vamos enfrentar uma enorme conflagração regional se não for imposto um cessar-fogo imediatamente.

Referiu que houve um genocídio de mais de 40.000 pessoas. Não tem dúvidas em qualificar o que se tem passado em Gaza como genocídio?

Não. Há 15 anos que estudo a situação na Palestina, primeiro como funcionária das Nações Unidas, depois como académica e depois como relatora especial. Concluí, em Março, que existiam motivos razoáveis para acreditar que Israel tinha cometido actos de genocídio. O genocídio é um crime que consiste em actos criminosos como matar, infligir sofrimento, danos físicos e psicológicos, ou criar condições de vida que levem à destruição de membros do grupo com a intenção - este é o elemento crítico - de destruir o grupo, e a intenção de destruir o grupo raramente tem estado tão presente, disponível e explicitada pelos líderes como no caso da Palestina, porque a intenção é criar um Grande Israel, o que tem vindo a acontecer há décadas. E o 7 de Outubro, com a sua enorme dor e violência que significou para os israelitas, proporcionou a oportunidade de avançar com a eliminação dos palestinianos. Não há qualquer dúvida de que se trata de um genocídio e a questão é que nem sequer é necessário provar que se trata de um genocídio para o impedir. A Convenção obriga os Estados, Israel e outros, a evitar o genocídio, porque a partir de 26 de Janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu a plausibilidade da violação da Convenção sobre o Genocídio. Desde então, todos deveriam ter tomado medidas. Toda a gente está de sobreaviso e, em vez disso, Israel continuou a matar e a massacrar pessoas.

Porque é que diz que Portugal é um dos poucos países onde estão reunidos todos os elementos para uma mudança poderosa ou significativa no curso da acção de Israel na Palestina?

Olhe, é uma linha ténue no sentido em que a Europa tem estado notavelmente ausente e até hipócrita. Desculpem a minha frontalidade. Mas com 42.000 pessoas mortas, peço às pessoas que me ouçam. Tem sido um ano incrivelmente doloroso ver seres humanos a serem massacrados e destruídos, Gaza devastada, Gaza já não existe. Foi quase totalmente arrasada. É inabitável e, perante tudo isto, perante 17 mil crianças mortas, o que é que a União Europeia fez com os seus valores e o seu empenho? Posso dizer-vos: até destruiu as liberdades fundamentais, a liberdade de expressão, a liberdade académica, o direito de protesto, a liberdade de reunião dos seus próprios cidadãos. E para quê? Para proteger Israel, proteger Israel da responsabilização. O que é que isto quer dizer? Um país como Portugal tem sido um pouco diferente desta massa, no sentido em que tem votado do lado certo da história na Assembleia Geral das Nações Unidas, e é muito vocal sobre a primazia do direito internacional.

Ainda não reconheceu o Estado palestiniano...

Entre outros. Nem sequer se juntou ao procedimento interno do Tribunal Internacional de Justiça iniciado pela África do Sul. Repare, esta é uma situação de “sim” ou “não”. Ou se é contra ou a favor. Sim, penso que muitos países europeus demonstram um bom grau de hipocrisia pelo facto de “sim”, serem a favor da solução de dois Estados e depois nem sequer reconhecerem o Estado da Palestina. Perdão, com ou sem o vosso reconhecimento, os palestinianos têm o direito à autodeterminação e à soberania reconhecida como povo sobre o pouco que resta da sua pátria. Penso que, em particular, pela história deste país, e devido ao legado do colonialismo nos países europeus e, mais uma vez, Portugal sabe algo sobre isso, sei que não espero que Portugal tenha uma ligação imediata com a Palestina como costumava ter com Timor-Leste. Foi muito importante o que Portugal fez no caso de Timor-Leste, mas quero dizer às pessoas: é disto que se trata; a humanidade de reconhecer os laços entre nós, para além da política. E os palestinianos estão a ser massacrados no derradeiro ataque à sua identidade. Como povo, para os palestinianos, a terra não é onde vivem, é quem são, como para os timorenses, e vai ser um acto de humanidade, tanto para com os palestinianos como para com os israelitas, intervir agora para acabar com isto. Porque este é um regime de apartheid, aquele que Israel estabeleceu. E posso explicar porque é que é apartheid, não é um slogan, é um termo jurídico que uso com plena compreensão do que significa do ponto de vista jurídico: dualismo jurídico e ditadura militar imposta aos palestinianos e direito civil imposto aos colonos israelitas que nem sequer deviam estar no Território Palestiniano Ocupado. Este é um sistema que tem de ser travado porque, como tal, aprisiona e condena a um futuro de desespero e falta de segurança tanto os palestinianos como os israelitas.

Lamenta que não lhe seja atribuído um tempo na agenda do Ministro dos Negócios Estrangeiros para uma reunião?

Olhe, eventualmente, pela forma como o povo português tem reagido onde quer que eu vá...é interessante que as pessoas me reconheçam na rua. A sala ontem na palestra estava cheia de gente. Foi durante duas horas, mal se conseguia respirar. E as pessoas estavam lá sentadas. E também tive tantos jornalistas a virem perguntar-me... por isso, de uma forma ou de outra, o Ministro saberá o que eu tinha para lhe dizer. Ele, ao não se encontrar comigo, perdeu uma oportunidade de me dar o seu ponto de vista. Mas, mais uma vez, não guardo rancor porque desconfio mesmo que foi a sua agenda que o impediu de se encontrar comigo.

Não sente isso como uma falta de consideração por um funcionário da ONU?

Não, não, não senti, porque também... olhe, o meu estatuto, as minhas credenciais não são estabelecidas pelo tipo de conduta dos outros. Eu sou quem eu sou. É muito clara para as pessoas a mensagem que trago, que se baseia inteiramente no direito internacional. E o que eu defendo, sei que é sensível para muitos, incluindo a bolha política, mas a maré mudou. A Palestina é uma questão decisiva, especialmente para a geração mais jovem, especialmente para as pessoas que suportaram o colonialismo e a brutalidade da opressão, e estou a referir-me ao Sul global. É isto que encontro na minha forma de abordar a questão da Palestina. E, mais uma vez, baseia-se principalmente nos direitos humanos, no direito internacional e à luz dessa inspiração, por isso, quero dizer, não obrigo ninguém a encontrar-se comigo, mas, mais uma vez, encontrei-me com funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Achei que não havia razão para não me envolver. Embora, sim, eu deveria ser recebida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros ou pelo Vice-Ministro. Não faz mal. Não sou muito protocolar. Mas também vou encontrar-me com uma enorme delegação de deputados e outros segmentos da sociedade portuguesa. Para mim, isso não é menos importante.

Será que a posição israelita de considerar António Guterres como persona non grata enfraquece a capacidade da ONU para agir e ajudar os mais necessitados na Palestina e no Médio Oriente em geral?

É terrível. Sinceramente, Israel nivelou completamente todos os princípios básicos de respeito e decoro por regras de conduta realmente básicas e, como membro das Nações Unidas, insultou e caluniou especialistas da ONU, incluindo eu própria, a Assembleia Geral, o Conselho dos Direitos Humanos, o Tribunal Penal Internacional, cujo procurador foi mesmo ameaçado através de tácticas de bandido, realmente de bandidos e, claro, esta não é a primeira vez que o senhor Guterres, o Secretário-Geral das Nações Unidas, que é o indivíduo mais importante no sistema representativo da ONU, é acusado. É um insulto extremo declará-lo persona non grata. Porquê? Por fazer declarações exprimindo princípios básicos da humanidade? Por conseguinte, toda a solidariedade para com o Secretário-Geral, e espero que este facto exponha ainda mais a realidade. Israel é um violador em série do direito internacional. Permitam-me que diga o seguinte: nenhum Estado tem uma agenda limpa e mãos limpas quando se trata de direitos humanos, certo? Quero dizer, gostaria que a situação fosse diferente, mas a maioria dos Estados viola o direito internacional e os direitos humanos em diferentes aspectos. Mas ninguém com a intensidade, a aptidão sistemática e o desdém...

Uma impunidade reiterada?

Sim, ia chegar lá.... e o problema é que, em mais de 75 anos, Israel nunca foi responsabilizado por múltiplas violações do direito internacional, do direito internacional humanitário, do direito dos direitos humanos, do direito penal da ONU, da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança, das resoluções do Conselho dos Direitos Humanos, dos pareceres consultivos do Tribunal Internacional de Justiça e mesmo das medidas provisórias desse Tribunal. Trata-se, portanto, de um violador visceral e em série do direito internacional, cujas credenciais no sistema das Nações Unidas deveriam ser reconsideradas.

Tendo em conta tudo o que se tem passado nas últimas semanas no Líbano, com os ataques israelitas e a resposta do Hezbollah, com os ataques do Irão na passada terça-feira, quase não ouvimos falar de Gaza e do que se passa em Gaza e das condições actuais dos palestinianos em Gaza...

Permitam-me que diga algo aos portugueses com quem não tive oportunidade de contactar diretamente. O genocídio, infelizmente, não é uma excepção na História. Enquanto europeus, somos fundamentalmente incapazes de evitar genocídios. Fizemo-lo com os Ruandeses. Fizemo-lo com os bósnios e estamos a fazê-lo com os palestinianos. Mas digo-vos: o Holocausto, que tanto marcou ou deveria ter marcado a nossa consciência colectiva, quero dizer, europeia, não foi absorvido como deveria. O Holocausto não tem a ver apenas com os campos de concentração, não tem a ver com a solução final. O Holocausto não teria sido possível sem séculos de perseguição do povo judeu na Europa e de discriminação institucionalizada, baseada na desumanização do povo judeu, que foi expulso da vida civil muito antes de ser exterminado nos campos de concentração. Por que razão estou a dizer isto? Porque a desumanização de que os palestinianos são alvo é extrema: no momento em que são massacrados, são também culpados, são difamados e agora são esquecidos. Isto é inaceitável e, antes do Holocausto, a Europa matou milhões de pessoas durante o colonialismo. Portanto, o genocídio não é um acidente na história. É o que acontece quando há desumanização do outro. Por isso, vamos lá acordar e impedir o primeiro genocídio deste século, que corre o risco de se tornar um modus operandi, se esta forma de Israel justificar as guerras, que basicamente recorreu ao genocídio ou à guerra, for aceite.

Portugal, o país onde muitos judeus foram mortos e expulsos há séculos, deveria nesta altura rever a sua relação com o Estado de Israel?

Mas repare: porque é que as pessoas continuam a fazer confusões? Israel, com o povo judeu… eu compreendo a tentativa de criar um Estado só para os judeus. Na minha opinião, foi uma ideia muito arriscada há 75 anos, porque escolheram um país que já era muito habitado e desapossaram a maioria do povo não judeu. Um milhão 800 mil. Quero dizer, a maioria dos palestinianos, árabes e muçulmanos foi despojada. A sua pátria foi completamente desmembrada de um dia para o outro. E, mais uma vez, por que razão foram obrigados a pagar um preço pelos séculos de discriminação que culminaram no Holocausto, pelo qual fomos responsáveis nós europeus? Mas hoje tantos judeus estão a revoltar-se e a rebelar-se contra o que Israel está a fazer. Não devemos confundir os crimes do Estado de Israel com tudo o que o povo judeu é. E, mais uma vez, não culpo nenhum judeu que se identifique com Israel. Mas culpo os governos que não tomam uma posição contra este Estado, que está a cometer crimes atrás de crimes. Devíamos deixar de ver esta questão como uma luta existencial entre os judeus e os muçulmanos. Isso é uma projecção. Em 2024, tudo o que era existencialmente justificado há 75 anos é completamente inaceitável e criminoso em 2024.

Ainda acredita na solução dos dois Estados?

É tudo uma questão de acreditar, não depende de mim. Não depende de ninguém. A solução dos dois estados é aquilo sobre o qual existe consenso na comunidade internacional, isto é, se os Estados estão empenhados em garantir que os palestinianos ficam com um território sobre o qual podem usufruir da sua soberania enquanto Estado, o direito à autodeterminação. Gostaria que as pessoas reflectissem sobre uma coisa: os países europeus, quero dizer, os países ocidentais em geral, são todos a favor de uma solução de dois Estados, mas depois nem sequer reconhecem o Estado da Palestina. Não será isto um sinal de hipocrisia? Mas, para além disso, no direito internacional, o direito de um Estado existir não existe. Os Estados vêm e vão. O que é fundamental, e é uma norma peremptória do direito internacional que não pode ser derrogada, é o direito dos povos a existirem em liberdade e dignidade. Portanto, um Estado, dois Estados, tem de ser um ou outro, porque os palestinianos não podem continuar a ser suprimidos e oprimidos e etnicamente limpos do que resta da sua terra. E esta é a responsabilidade de todos os Estados-Membros, incluindo Portugal. Os muitos Estados europeus, incluindo Portugal, continuam a dizer, ‘bem, estamos a ajudar os palestinianos, estamos a ajudar a reformar a Autoridade Palestiniana’, mas desculpem, vejam a realidade por detrás disto. A que título é que os países europeus e outros têm de se imiscuir na política interna de um Estado que nem sequer reconhecem, enquanto não estão a ajudar a concretizar o mais importante. O que estas pessoas precisam é de liberdade, e é aqui que residem, em última análise, as nossas obrigações enquanto comunidade internacional. Temos de garantir que os palestinianos são livres de se autodeterminarem e não nos metermos nos seus assuntos internos.

Os críticos acusaram-na de antissemitismo e de preconceito contra Israel. Como comenta isso?

Bem, olhe, estas são as calúnias habituais que Israel e os acólitos pró-Israel utilizam para destruir qualquer voz crítica sobre as práticas israelitas. Nada. Só espero que Israel se comporte como um membro das Nações Unidas amante da paz, como se comprometeu a ser há 75 anos, quando foi aceite como membro da ONU, apesar de ter causado o desmembramento de todo um povo. E, ainda assim, Israel comporta-se como um Estado de apartheid. É isto que eu contesto: comete crimes sobre crimes. Nada contra o Estado de Israel, a não ser o facto de ser um violador persistente do direito internacional. Antissemitismo, apoio ao terrorismo, qualquer pessoa que tenha proferido palavras de crítica às políticas e práticas israelitas foi acusada disso: eu, outros relatores especiais, o Secretário-Geral da ONU. Todos são anti-semitas desde que não elogiem o Estado de Israel, mesmo quando este comete genocídio sobre o povo palestiniano. O que dizem é falso e inaceitável.

Que mensagem poderia enviar ao povo israelita e às famílias que perderam os seus entes queridos na véspera do dia 7 de Outubro?

Como sempre disse, manifestei-vos a minha total solidariedade e condolências. Estou em contacto com as famílias que perderam os seus familiares, com as famílias israelitas que têm os seus familiares ainda reféns. Estou com elas. Isto não se trata de uma luta entre israelitas e palestinianos, e devemos usar da máxima compreensão, compaixão e sensatez tanto para com os israelitas como para com os palestinianos. Mas creio que, neste momento, os israelitas estão demasiado magoados para os atormentar e, em grande medida, estão doutrinados por um Estado que fez do ódio anti-palestiniano uma doutrina política. Este é um momento de dor, para reconhecer o trauma, a dor do outro, e aceitar a humanidade mútua, a fim de perspectivar um futuro diferente.


Fonte: tsf.pt


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