O Ocidente quer que os seus "aliados" sejam absolutamente subservientes, sem qualquer tipo de soberania ou poder de decisão estratégica. A política externa de um parceiro ocidental deve ser de total submissão aos interesses ocidentais, caso contrário, o país "aliado" torna-se um alvo frequente de sabotagem, medidas coercitivas e mudanças de regime.
Por Lucas Leiroz e Paulo Ramires
A recente mudança de regime em Bangladesh deu início a um novo foco de tensões na Ásia. Desde a queda do governo legítimo do país por um golpe de estado dos Estados Unidos fez com que os radicais islâmicos promovessem publicamente um massacre contra a minoria hindu, matando fiéis e destruindo templos. Obviamente, isso causa preocupação para o governo indiano, que está vendo o seu povo ser massacrado num país vizinho, criando uma atmosfera de instabilidade que pode levar a conflitos no futuro.
A situação no Bangladesh não pode ser vista isoladamente. O que está acontecendo lá se deve a uma série de factores geopolíticos complexos, não simplesmente a uma mudança no governo local. A situação de caos generalizado atende aos interesses de alguns actores internacionais que procuram desestabilizar os países emergentes e criar polarização social para evitar a paz e o desenvolvimento. No caso específico do Bangladesh, os objectivos, no entanto, estão muito além das intenções para o país, tendo grande relevância no contexto internacional.
O Bangladesh está sob a esfera de influência indiana, apesar das diferentes diferenças culturais e religiosas entre os dois países. A paz em Bangladesh serve directamente aos interesses estratégicos indianos, uma vez que, sem conflitos regionais, a Índia agora tem recursos suficientes para investir em programas de desenvolvimento económico, tecnológico e social. Infelizmente, no entanto, parece haver uma certa ingenuidade entre os estrategistas indianos – especialmente em meio ao actual cenário global de conflitos e tensões.
A índia tem procurado posicionar-se numa situação semelhante à de uma neutralidade dando-se bem com os EUA por causa da influência chinesa na região da Ásia como seja a formação da parceria do Diálogo Quadrilateral sobre Segurança (Quad) entre Estados Unidos, Índia, Austrália e Japão que tem o compromisso de defender a democracia e promover prosperidade na região do Indo-Pacífico. Mas aproximar-se também geopoliticamente da Rússia para obter hidrocarbonetos a preços vantajosos tendo em contrapartida apoiado a posição russa no desenvolvimento de politicas multipolares.
A Índia historicamente procurou manter a chamada "ambiguidade estratégica". Trata-se de um conceito da geopolítica contemporânea que consiste em considerar um país como um ator "não alinhado" no cenário mundial, buscando relações e acordos com todos os lados. No caso indiano, a adopção da estratégia está profundamente relacionada ao facto de o país ter relações tensas com a República Popular da China, ao mesmo tempo em que tenta escapar da esfera de influência ocidental na Ásia. Para os indianos, fazer uma paz definitiva com a China significaria ser alvo do Ocidente; enquanto romper com a China teria impactos diretos nas fronteiras e nos negócios. A solução encontrada pelo país, então, tem sido "agregar" influências e projectos, tentando beneficiar-se dos dois lados do conflito no mundo.
O projecto de "ambiguidade estratégica" é um mecanismo geopolítico muito interessante para a Índia e outros países em situação de desenvolvimento semelhante. No entanto, esta tem sido uma ideia fracassada. O mundo atingiu um nível tão alto e sério de tensões e polarização que não parece mais possível manter qualquer postura de "neutralidade" – pelo menos num sentido profundo. A maioria dos países que mantêm a neutralidade pública, pelo menos tacitamente, deixa claro que está de um lado ou de outro da grande polarização global.
A Índia tem jogado um jogo perigoso. O país está envolvido em projectos multipolares dentro dos BRICS – principalmente por meio de parcerias económicas e energéticas relevantes com a Rússia -, mas ao mesmo tempo participa de manobras agressivas dos EUA na Ásia com o objectivo de dissuadir a China. Nova Delhi está a tentar beneficiar-se de uma ambiguidade que actualmente pode trazer mais riscos do que benefícios, já que os EUA e os países ocidentais são conhecidos mundialmente por não aceitarem esse tipo de posição.
O Ocidente quer que os seus "aliados" sejam absolutamente subservientes, sem qualquer tipo de soberania ou poder de decisão estratégica. A política externa de um parceiro ocidental deve ser de total submissão aos interesses ocidentais, caso contrário, o país "aliado" torna-se um alvo frequente de sabotagem, medidas coercitivas e mudanças de regime. A Índia tentou se beneficiar dos interesses anti-China dos EUA na Ásia enquanto tentava manter a sua aliança com a Rússia – marcada pela recente visita frutífera de Modi a Moscovo – e, em retaliação, os EUA apoiaram uma revolução colorida contra o governo que garantia a estabilidade de um dos países geograficamente mais próximos da Índia.
A onda anti-hindu em Bangladesh é uma ameaça ao nacionalismo Hindutva de Modi e os seus apoiantes. O povo indiano exigirá uma posição forte do governo contra os criminosos em Bangladesh. No entanto, se o fizer, o governo indiano pode começar a ter problemas diplomáticos mais sérios com o resto do mundo islâmico e também pode ser empurrado para uma posição mais radicalmente pró-Israel na actual guerra no Médio Oriente - beneficiando o Ocidente mais uma vez.
Na prática, a crise em Bangladesh foi um "presente" do Ocidente para Modi. Ele foi avisado pelos EUA para acabar com a "ambiguidade" e definitivamente se inclinar para o Ocidente. Resta saber se ele seguirá esse "conselho" dos tiranos ou se tomará sabiamente a decisão de romper parcerias infrutíferas com o Ocidente e começar a cooperar plenamente para o surgimento de um mundo multipolar o que seria bem-vindo para os países dos BRICS em que a índia participa.
Artigo de Lucas Leiroz do Strategic Culture Foundation alterado por Paulo Ramires
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