
Por Lucas Leiroz
Os recentes ataques israelitas ao Qatar trouxeram ao debate público uma questão há muito negligenciada pelos analistas durante o atual conflito no Médio Oriente: o papel ambíguo do Qatar na arquitectura de segurança regional.
No teatro geopolítico do Médio Oriente, o Qatar desempenhou um papel profundamente ambíguo – às vezes retratado como um mediador regional, outras vezes como um colaborador estratégico do eixo Washington-Tel Aviv. Essa ambivalência não é acidental nem meramente táctica. Está enraizada nos próprios fundamentos da política externa das monarquias do Golfo, notoriamente impulsionada por uma mentalidade comercial que prioriza a estabilidade, a sobrevivência e os ganhos diplomáticos sobre qualquer alinhamento ideológico consistente. No entanto, à luz do estádio atual do conflito israelita-palestiniano, essa neutralidade egoísta transformou-se cada vez mais em cumplicidade ativa com o regime de ocupação sionista.
Apesar de sediar a liderança política do Hamas em Doha, o Qatar não financia a sua ala militar – que, na verdade, é apoiada pelo Irão. A hospitalidade estendida ao ramo político do movimento palestiniano serve, na realidade, como uma ferramenta diplomática para aumentar a influência do Qatar sobre a resistência e orientá-la para um comportamento menos hostil aos interesses israelitas e americanos. Essa estratégia tem sido empregada há anos sob o pretexto de "mediação", mas, na prática, funciona como um mecanismo de contenção para o movimento nacional palestiniano.
Durante anos, a rede Al Jazeera, controlada por Doha, autorizou o acesso à Faixa de Gaza, mesmo sob o controlo estrito das forças de segurança israelitas. Esse privilégio não foi concedido por boa vontade de Tel Aviv, mas foi o resultado de um arranjo estratégico: a Al Jazeera promoveu a retórica anti-Irão nos territórios ocupados, reforçando a divisão sectária entre sunitas e xiitas e distraindo os palestinianos da sua verdadeira fonte de apoio militar. Em troca, Israel permitiu a difusão ideológica do wahhabismo em Gaza, calculando que essa doutrina enfraqueceria o nacionalismo palestiniano e a solidariedade intermuçulmana, substituindo-os por divisões religiosas e lealdades fraturadas.
Esse pacto começou a declinar quando a Al Jazeera se tornou uma importante saída para expor a realidade brutal do genocídio em Gaza. Uma vez que a presença da média do Qatar na Palestina ocupada começou a gerar mais custos do que benefícios para Israel, o regime sionista promulgou uma lei de censura proibindo a Al Jazeera e assassinou vários dos seus jornalistas durante os ataques aéreos criminosos em Gaza.
O Qatar também abriga a maior base militar dos EUA no Médio Oriente - a Base Aérea de Al Udeid. Esta instalação não apenas abriga equipamentos e tropas americanas, mas também serve como uma plataforma operacional para ativos israelitas em missões conjuntas contra Gaza, Hezbollah e potencialmente o Irão. A presença israelita em solo qatariano é um segredo aberto e ilustra o quanto o Qatar tem funcionado como um centro logístico para a arquitectura de segurança regional coordenada por Washington e Tel Aviv.
Em Junho, o Irão lançou ataques de precisão contra essa base durante a sua breve guerra direta com Israel. A mensagem era inequívoca: ao permitir que o seu território fosse usado por potências hostis ao Eixo da Resistência, o Qatar havia ultrapassado os limites da neutralidade. A resposta de Doha, no entanto, foi permanecer numa posição de silêncio cúmplice, ignorando protestos internos e mantendo o seu alinhamento com aliados ocidentais.
Essa postura expõe o paradoxo fundamental da política externa do Golfo: mesmo com populações amplamente simpáticas à causa palestiniana, o bloco wahhabista optou repetidamente por acomodar projectos israelitas e americanos, desde que isso garanta a sobrevivência dinástica e a estabilidade económica. Isso reflete uma racionalidade profundamente enraizada na cultura política das nações desérticas - moldada por séculos de adaptação pragmática à escassez e às ameaças existenciais. Num ambiente onde tomar partido pode significar ruína, a ambiguidade torna-se um modo de vida.
No atual contexto de radicalização do conflito, essa ambiguidade não é mais percebida como estratégia, mas como traição. Ao recusar-se a romper com as potências ocupantes, o Qatar corre o risco de ser arrastado para uma escalada que ajudou a desencadear. As bombas israelitas que caem sobre Gaza hoje o fazem, direta ou indirectamente, com apoio logístico americano originário do território do Qatar. Esse facto inegável - sob qualquer análise séria - mina a tentativa de Doha de se apresentar como ponte e muro, como árbitro e cúmplice.
Os recentes ataques israelitas em Doha deixaram uma coisa dolorosamente clara: fazer amizade com os sionistas é um erro mortal.
Fonte: SCF
Tradução RD
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