2022
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

TODA A GENTE QUER ENTRAR NO EXPRESSO DOS BRICS

 

"A Eurásia está prestes a aumentar muito de tamanho, com países fazendo fila para se juntarem aos BRICS e à OCX, liderados pela China e pela Rússia", diz Pepe

Por Pepe Escobar

Comecemos com o que é de facto um conto sobre o comércio do Sul Global entre dois membros da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Em seu cerne está o já notório drone Shahed-136 – ou Geranium-2, em sua denominação russa: o AK-47 da guerra aérea pós-moderna.

Os Estados Unidos, em mais um característico ataque histérico transbordando de ironia, acusou Teerão de armar as Forças Armadas Russas. Tanto para Teerão quanto para Moscovo, o drone superstar, de ótimo custo-benefício e terrivelmente eficiente, usado no campo de batalha ucraniano, é um segredo de estado: seu uso desencadeou uma tempestade de negativas de ambos os lados. Se esses drones são made in Irão, ou se o projecto foi comprado e a fabricação tem lugar na Rússia (a opção mais realista) não faz a menor importância.

Os registros mostram que os Estados Unidos armam até o pescoço a Ucrânia contra a Rússia. O Império, na verdade, é um combatente na guerra, por intermédio de um bando de "consultores", conselheiros, treinadores, mercenários, armamento pesado, munições, inteligência via satélite e guerra eletrônica. E, no entanto, os funcionários imperiais juram que não participam da guerra. Eles, mais uma vez, mentem.

Bem-vindos a mais um exemplo explícito da "ordem mundial baseada em regras" em operação. É sempre o Hegêmona quem decide quais regras aplicar, e quando. Qualquer um que se contraponha a ele é um inimigo da "liberdade" e da "democracia", ou qualquer outro chavão, deverá ser – o que mais seria? – punido com sanções arbitrárias.

No caso do Irão, há décadas sancionado até a exaustão, o resultado foi, como seria de se esperar, uma outra ronda de sanções. O que é irrelevante. O que importa é que, segundo o Corpo de Guarda Revolucionário Islâmico do Irão, nada menos que 22 países – lista que vem crescendo – estão fazendo fila para pegar o bonde do Shahed.

Até mesmo o líder da Revolução Islâmica, o Aiatolá Ali Khamenei, alegremente entrou na onda, comentando que o Shahed-136 não precisa photoshop.

A corrida rumo aos BRICS+

O que o novo pacote de sanções contra o Irão realmente "conseguiu" foi desfechar mais um golpe na cada vez mais problemática assinatura do ressuscitado acordo nuclear em Viena. Mais petróleo iraniano no mercado, na verdade, seria um alívio para as dificuldades de Washington após a recente e o épico desprezo da OPEC+.

No entanto, um imperativo categórico continua existindo. A iranofobia – da mesma forma que a russofobia – sempre fala mais alto para os defensores da guerra straussianos-neocons que comandam a política externa americana e para seus vassalos europeus.

Então, aqui temos mais uma escalada hostil nas relações do Irão tanto com os Estados Unidos quanto com a União Europeia, uma vez que a junta não-eleita de Bruxelas também sancionou três generais iranianos.

Compare-se isso com o destino do drone turco Bayraktar TB2 – que, diferentemente das "flores no céu" (os gerânios russos) mostrou um péssimo desempenho em campo de batalha.

Kiev tentou convencer os turcos a usarem uma fábrica de armamentos da Motor Sich na Ucrânia ou abrirem uma nova empresa na Transcarpátia/Lviv para construir Bayraktars. O oligarca presidente da Motor Sich, Vyacheslav Boguslayev, de 84 anos de idade, foi acusado de traição por suas ligações com a Rússia, e talvez seja trocado por prisioneiros de guerra ucranianos.

Ao final, a negociação fracassou em razão do excepcional entusiasmo mostrado por Ancara em trabalhar para a construção de um novo centro de produção de gás na Turquia – uma sugestão pessoal do Presidente russo Vladimir Putin a seu colega turco Recep Tayyip Erdogan.

O que nos leva à interconexão cada vez maior entre os BRICS e os nove membros da OCX – à qual essa instância russa-iraniana de comércio militar está inextricavelmente ligada.

A OCX, liderada pela China e pela Rússia, é uma instituição paneurasiana cujo foco original era o combate ao terrorismo, mas que agora se volta cada vez mais para a cooperação geoeconômica – e geopolítica. Os BRICS, liderados pela tríade Rússia, Índia, e China, superpõem-se à agenda da OCX em termos geoeconômicos e geopolíticos, expandindo essa agenda para a África, América Latina e mais além: esse é o conceito dos BRICS+, analisado em detalhe num recente relatório do Clube Valdai , e plenamente abraçado pela parceria estratégica Rússia-China.

O relatório pesa os prós e contras de três cenários relacionados a possíveis candidatos aos BRICS+ no futuro próximo:

Primeiro, os países que foram convidados por Pequim para fazer parte da cimeira dos BRICS de 2017 (Egipto, Quênia, México, Tailândia, Tajiquistão).

Segundo, os países que fizeram parte do encontro de chanceleres dos  BRICS, em Maio do corrente ano (Argentina, Egipto, Indonésia, Cazaquistão, Nigéria, UEA, Arábia Saudita, Senegal, Tailândia).

Terceiro, as principais economias do G20 (Argentina, Indonésia, México, Arábia Saudita, Turquia).

E há também o Irão, que já demonstrou interesse em se juntar aos BRICS.

O Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, confirmou recentemente que "diversos países" estão morrendo de vontade de ingressar nos BRICS. Entre eles, um importantíssimo actor do Oeste Asiático: a Arábia Saudita.

O que é ainda mais surpreendente é que, há apenas três anos, no governo do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, o Príncipe Muhammad bin Salman (MbS) – o verdadeiro governante do país – estava resolvido a se juntar a uma espécie de OTAN árabe, na condição de aliado privilegiado do Império.

Fontes diplomáticas confirmam que no dia seguinte à retirada das tropas americanas do Afeganistão, os enviados de MbS começaram a negociar seriamente com Moscovo e Pequim.

Supondo-se que os BRICS alcancem o consenso necessário para a aprovação da candidatura de Riad em 2023, mal se pode imaginar as consequências avassaladoras dessa decisão para o petrodólar. Ao mesmo tempo, é importante não subestimar a capacidade dos controladores de criarem o caos.

A única razão pela qual Washington tolera o regime de Riad é o petrodólar. Não se pode permitir que os sauditas persigam uma política externa independente e verdadeiramente soberana. Se isso acontecer, o realinhamento geopolítico não irá afetar apenas a Arábia Saudita, mas também todo o Golfo Pérsico.

Mas é cada vez mais provável que isso aconteça, depois de a OPEC+ ter de fato escolhido o caminho BRICS/OCX liderado pela Rússia e pela China – no que pode ser interpretado como um preâmbulo brando para o fim do petrodólar.

A tríade Riad-Teerã-Ancara

O Irão comunicou o seu interesse em ingressar nos BRICS antes mesmo da Arábia Saudita. Segundo fontes diplomáticas do Golfo Pérsico, eles já estão envolvidos num canal algo confidencial com a mediação do Iraque, na tentativa de se organizarem para tal. A Turquia virá em seguida – nos BRICS, certamente, e possivelmente na OCX, onde Ancara hoje tem o status de observador extremamente interessado.

Agora, imaginem essa tríade – Riad, Teerã, Ancara – estreitamente ligadas a Rússia, Índia e China (o verdadeiro cerne dos BRICS), e futuramente na OCX, onde o Irão é, até agora, o único país do Oeste Asiático aceite como membro pleno.

O golpe estratégico desferido contra o Império quebrou todos os recordes. As discussões que levam aos  BRICS+ focam o desafiador caminho rumo a uma moeda global lastreada em commodities capaz de superar a primazia do dólar.

Diversos passos interligados apontam para uma simbiose cada vez maior entre os BRICS+ e a SCO. Os estados-membros desta última já chegaram a um acordo quanto a um roteiro para o aumento gradual do comércio em moedas nacionais com base em acordos mútuos.

O Banco Estatal da Índia – o maior emprestador do país – vem abrindo contas especiais em rúpias para o comércio relacionado com a Rússia.

O gás natural russo enviado à Turquia será pago 25% em liras turcas, com um desconto de 25% que Erdogan pediu pessoalmente a Putin.

O banco russo VTB lançou transferências para a China em yuans, contornando o SWIFT, enquanto o Sberbank começou a emprestar dinheiro na moeda chinesa. A gigante de energia russa Gazprom combinou com a China que os pagamentos por fornecimento de gás devem mudar para rublos e yuans, meio a meio.

O Irão e a Rússia estão unificando os seus sistemas bancários para conduzir comércio em rublos/rials.

O Banco Central do Egipto está tomando providências para estabelecer um índice para a libra egípcia – usando um grupo de moedas e o ouro – com o objetivo de afastar a moeda nacional do dólar.

E, também, há a saga do TurkStream. .

O presente do centro de gás

Ancara, há anos, vem tentando se posicionar como um centro privilegiado de gás Oriente-Ocidente. Após a sabotagem dos Nord Streams, Putin entregou de bandeja à Turquia a possibilidade de aumentar o fornecimento de gás para a União Europeia usando esse centro. O Ministério da Energia turco afirmou que Ancara e Moscovo, em princípio, já chegaram a um acordo.

Na prática, isso significa que a Turquia irá controlar o fluxo de gás não apenas da Rússia, mas também do Azerbaijão e de grande parte do Oeste Asiático, talvez incluindo até mesmo o Irão e a Líbia, no nordeste da África. Terminais de GNL no Egipto, na Grécia e na própria Turquia irão completar a rede.

O gás russo se desloca através dos gasodutos TurkStream e Blue Stream. A capacidade total dos gasodutos russos é de 39 mil milhões de metros cúbicos ao ano.

O TurkStream foi inicialmente projectado como um gasoduto de quatro linhas, com uma capacidade nominal de 63 mil milhões de metros cúbicos ao ano. Nas atuais circunstâncias, apenas duas linhas – com capacidade total de 31,5 mil milhões de metros cúbicos – foram construídas.

Portanto, uma extensão, em tese, é mais praticável – com a totalidade dos equipamentos de fabricação russa. O problema, mais uma vez, é a instalação dos dutos. Os navios a serem usados pertencem ao Allseas Group – e a Suíça faz parte da demência das sanções. No Mar Báltico, embarcações russas foram usadas para concluir a construção do Nord Stream 2. Mas, para uma extensão do TurkStream, seria necessária operar em profundidade oceânica muito maior.

O TurkStream não seria capaz de substituir completamente o Nord Stream, pois ele comporta volumes muito menores. A boa notícia para a Rússia é não ser alijada do mercado europeu. É evidente que a Gazprom só assumiria o significativo investimento necessário para a construção de uma extensão se houver garantias férreas quanto a sua segurança. A desvantagem é que a extensão também transportaria gás dos concorrentes da Rússia.

Aconteça o que acontecer, resta o facto de que o combo Estados Unidos-Reino Unido ainda exerce uma forte influência sobre a Turquia – e a BP, a Exxon Mobil e a Shell, por exemplo, participam de praticamente todos os projectos de extração de petróleo em todo o Oeste Asiático. Eles, portanto, certamente iriam interferir na operação dos centros de gás turcos, como também na determinação do preço do gás. Moscovo tem que pesar todas essas variáveis antes de se comprometer com o projeto.

A OTAN, é claro, ficará lívida de ódio. Mas nunca subestimem o Sultão Erdogan, especialista em minimizar riscos. Sua história de amor tanto com os BRICS quanto com a OCX está apenas começando.





quinta-feira, 6 de outubro de 2022

UM GASODUTO E UMA ESTÓRIA MAL CONTADA PARA BOI DORMIR


Por Paulo Milheiro da Costa


No seu extremo Sudoeste, entre a Suécia e a Alemanha, o mar Mar Báltico termina num estreito (bastante estreito), no meio do qual existe uma pequena ilha, mais pequena do que a Ilha da Madeira, que faz parte da Dinamarca.

O local é obviamente um ponto estratégico, porque é por ali que entra e sai do Báltico a esquadra russa, baseada em São Petersburgo. Atravessar esse ponto, no sentido Leste-Oeste é o único acesso ao Atlântico para a frota russa.]

Se é estratégico para os russos é também, por definição, para os americanos, que constantemente patrulham aquelas águas. À superfície e também debaixo de água. O Mar Báltico não é grande, pelo que Russos e Americanos, além de Suecos, Dinamarqueses, Finlandeses, Polacos, Alemães e até os minúsculos Balticos cruzam-se constantemente nessas águas e cada um sabe, em qualquer altura, onde estão os outros. É apertado, mas lá andam, tem de ser. Passar despercebido é quase impossível.

Aquela pequena ilha dinamarquesa que referi, que se chama Bornholm, está eriçada de antenas, sensores, câmaras vídeo e microfones acima e debaixo de água, vigiando e monitorizando tudo o que passa por ali, entrando ou saindo do Mar Báltico.

Tudo é visto, incluindo peixes. Tudo isto é operado por militares dinamarqueses e americanos.

Ora, os hoje célebres gasodutos russo/alemães (que são 3) passam por ali, assentes no fundo do mar envoltos em estruturas de cimento e aço, a 60 metros de profundidade. E inúmeras câmaras de vídeo vigiam-nos em permanência. Mas foi ali, naquele local com tanto trânsito e hiper vigiado 24/24, que os gasodutos foram rebentados deliberadamente.

A questão é: com este aparato todo de vigilância, como é que, sobretudo an ilha Bornholm, ninguém viu nem ouviu nada?!

Resposta: decorriam exercícios de forças americanas naquelas águas, conhecidos por todos, àquela hora. E apenas se podiam aproximar navios americanos autorizados. Um dos exercícios era manuseamento de explosivos debaixo de água.

Agora, podem dizer que isto são meras provas circunstanciais, o que é verdade. Também podem dizer que frotas de todos os países fazem exercícios, o que também é verdade.

Só não percebo como é que os russos conseguiram penetrar nessa zona hiper vigiada e rebentar com os seus próprios gasodutos, (que custaram muitos biliões) sem serem detectados, cometendo dessa forma o crime mais masoquista e mais inútil da História.

Mas a população da Europa, depois de ser submetida a muitos meses de desinformação ridícula, já acredita em tudo. É pena.



sábado, 24 de setembro de 2022

MOVIMENTO DA ALEMANHA PARA SE TORNAR NUMA POTÊNCIA MILITAR SERÁ SUICIDIO TANTO PARA BERLIM QUANTO PARA A UE


Por Martin Jay

Scholz e seus colegas não estão preocupados com a vitória de Putin. Eles estão preocupados com o impensável. Putin perdendo.

A questão do papel da Alemanha numa Europa militarizada não vai desaparecer. Ele continua surgindo ou retornando como uma erupção cutânea assistida pelo grupo de comentadores geopolíticos que podem ver o que muitas pessoas comuns não podem: a Alemanha retornando às suas raízes de superpotências militares.

Essa ideia de a Alemanha ter um exército poderoso foi frustrada por décadas, dada a enorme onda de opinião no país contra a repetição das aflições da história que atormentam as gerações mais velhas até hoje, que não se incomodam tanto com o horror da Terceira Reich, mas mais por derrotas no campo de batalha que deixaram cicatrizes até hoje que não são apenas visíveis, mas precisam ser arranhadas de vez em quando.

Olaf Scholz pertence a uma geração e a uma elite política que não pode esquecer a derrota humilhante tanto nos arredores de Moscovo, mas depois em Stalingrado. O papel da Alemanha em apoiar a Ucrânia no campo de batalha com equipamentos traz essas derrotas anteriores para a mente de Schilz como se fosse ontem.

E assim armar a Ucrânia é quase um dever público contra Putin, que é visto mais como um líder soviético ligado à história do que um moderno construindo um estado moderno. Mas ir mais longe e conseguir rearmar a Alemanha parece um gigantesco acto de suicídio tanto para ele como chanceler – e líder de um governo de coligação que se confunde com a política internacional – quanto para a geração política que ele representa.

Foi a guerra na Ucrânia que permitiu que a resistência habitual à ideia de “rearmamento” fosse interrompida para permitir que um parlamento de cães de guerra se abatesse sobre seu líder com seu plano de 100 mil milhões de euros para impulsionar o exército. O setor militar alemão não é apenas assediado por problemas de corrupção, mas também uma área incomumente sobrecarregada e complicada de gerenciar e pode levar algum tempo até que esse plano possa se materializar. Além disso, alguns argumentarão que 100 mil milhões de euros não é muito dinheiro quando se trata de modernizar o que sempre foi uma parte dilapidada dos gastos públicos. Não é o dinheiro que importa, mas as ideias que vêm com ele.

A Alemanha está agora usando a guerra da Ucrânia para fazer o impensável, muitos acreditam em liderar um programa para dar à UE o seu próprio exército, que provavelmente não será chamado de “exército da UE”, pois não será dirigido por Bruxelas, mas por Berlim. Com este novo movimento, que representa uma mudança tão sísmica para os líderes da Alemanha, a Alemanha começará a pensar em abrir as suas asas e agir como uma mini superpotência em torno dos hotspots do mundo na África e no Médio Oriente. E já existem outros estados-membros da UE que enviariam as suas tropas, para apoiar essa nova iniciativa militar alemã, e é por isso que o exército da UE pelo nome menos, mas pela prática, evoluirá dando tanto à UE a única coisa que sonhou desde que o bloco surgiu nos anos 60, mas também a mãe de todos os pesadelos ao mesmo tempo.

Uma das razões pelas quais a Alemanha precisa gastar esse dinheiro em primeiro lugar em militares é que os seus próprios stockes estão acabando devido ao envio de muitos kits para a Ucrânia e também promessas feitas aos países vizinhos de fornecer novos tanques no caso deles enviarem os seus antigos russos/soviéticos para Kiev. E depois há as promessas que a Alemanha fez de enviar novos tanques Leopard para o regime da Ucrânia.

Então, no papel, há muitas promessas que já estão a ser quebradas. Segundo relatos, as promessas de enviar armas de longo alcance para a Ucrânia já foram quebradas, então é preciso perguntar se as promessas de enviar os tanques são aquelas que podem ser levadas a sério. A Alemanha está confusa sobre a Ucrânia e quais devem ser seus objetivos, o que explica a natureza caprichosa das decisões de Scholz e as promessas que muitas vezes acabam sendo falsas.

Mas a verdadeira decisão por trás dos gastos é defender a Alemanha. Scholz e os seus colegas não estão preocupados com a vitória de Putin. Eles estão preocupados com o impensável. Putin perdendo. Neste caso, os alemães estão preocupados com um ataque à própria pátria alemã com apenas a Polônia dividindo a Rússia e a Alemanha.

Além de levantar a questão óbvia de uma total falta de confiança na OTAN para impedir ou evitar tal movimento de Putin, isso não é um bom presságio para a Europa, ou para o futuro da OTAN. Se tal ataque acontecesse, talvez até mesmo em solo polaco, e a OTAN não agisse rapidamente, então a credibilidade desta organização entraria em colapso em poucos minutos e a Alemanha estaria mais uma vez travando uma guerra com a Rússia, com as oportunidades não parecerem boas hoje, com base nas lições da história.

A decisão da Alemanha de romper com a OTAN e formar a sua própria organização de manutenção da paz, que funcionários da UE em Bruxelas chamarão de exército da UE – ou um 'pilar' dentro da OTAN - apresenta uma série de problemas para a maioria dos EUA. Biden pode muito bem receber tal iniciativa, pois pode ser considerada uma maneira de aliviar os americanos do dever de conflito, certamente na Europa e certamente no pior cenário com a Rússia, na qual ele já indicou que não envolverá tropas dos EUA - um dos as razões pelas quais ele não quer provocar Putin enviando artilharia de longo alcance capaz de atingir a própria Rússia. Mas, a longo prazo, um exército da UE dentro ou fora de uma estrutura da OTAN só pode se tornar um problema maior em vez de uma solução para o conflito global em geral e certamente na Ucrânia.

Não é uma ideia nova ter um contingente tão 'dissidente' de países da OTAN. Ironicamente, foi a América que mostrou ao mundo que era capaz de fazer isso sozinha no Afeganistão, onde nunca foi relatado que os EUA tinham o seu próprio contingente independente de soldados não pertencentes à OTAN, que descobri quando trabalhei lá em 2008 e que oficiais dos EUA estavam sempre envergonhados para falar; eles estavam lá para o caso de a operação liderada pela OTAN – chamada ISIF – nem sempre ter saído exactamente como Washington queria, disseram-me generais americanos.

Assim, os americanos dificilmente podem apontar o dedo para a Alemanha e acusá-la de ser a mosca na sopa se seguirem em frente com as suas ambições militares. Mas certamente prejudicará as relações EUA-UE, pois os EUA não serão mais uma força dominante. Além disso, a operação liderada pela Alemanha pode ter objetivos diferentes da OTAN nos pontos críticos do mundo, o que colocará mais pressão nas relações comerciais, tanto multilateral quanto unilateralmente com a UE. Até agora, a UE segue em grande parte Washington em quase todas as grandes iniciativas políticas e, portanto, este é realmente um passo no escuro, mas que muitos federalistas hardcore em Bruxelas vão dar as boas-vindas. Para a própria Alemanha, o movimento está repleto de armadilhas, pois há muitos cenários além da mera manutenção da paz na África, onde toda a ideia pode explodir na cara daqueles que a defendem, incluindo os cães de guerra em Bruxelas, que sentirão uma nova onda de estados-membros do tipo Brexit que perderam uma identidade dentro da UE, provavelmente começando pela Hungria. 'Quanto maior você é, mais forte você cai' não é apenas um ditado que se aplica a Putin. Será mais adequado para a cruz alemã em uniformes, mais ainda os que têm uma braçadeira azul de Bruxelas.


Fonte: strategic-culture.org

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O OCIDENTE ISOLA A RÚSSIA OU A RÚSSIA ISOLA O OCIDENTE?




Por Gordon M. Hahn

O facto é que ambas são verdadeiras. Washington e Bruxelas estão expulsando a Rússia em grande parte, embora não totalmente, do Ocidente. Moscovo está isolando o Ocidente do “resto” com a participação ansiosa da China e de outros parceiros e vem fazendo isso há algum tempo.

Liderado por Washington, o Ocidente foi consideravelmente longe ao expulsar a Rússia da política, economia e cultura ocidentais desde a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro.

O problema é que a Rússia e a China há muito se preparam para o dia em que uma ruptura completa com o Ocidente seria necessária em vista de seus interesses nacionais como Moscovo e Pequim os veem.

China, Rússia e vários parceiros estão copiando a organização internacional ocidental representada por instituições como a UE e a OTAN, mas em formato maior. As invenções da Rússia, a União Económica da Eurásia (EEU), a organização BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), e a Iniciativa One Belt One Road (OBORI) da China são os precursores institucionais de um sistema global alternativo ao do Ocidente e por ele dominado.

UE, OTAN, FMI e Banco Mundial. Essas estruturas estão agora se tornando as plataformas para uma deserção completa do Ocidente por grande parte do “resto” econômica, financeira, política e até cultural e militar.

O projeto global da China e da Rússia abrange planos de desdolarização, a criação de bancos alternativos e outras instituições económicas, incluindo o comércio de energia, já estavam em andamento antes da nova guerra ucraniana. Todas essas instituições e políticas estão agora movendo-se em alta velocidade rumo à criação de uma comunidade internacional alternativa que funcionará de forma autónoma e próspera sem o Ocidente.

A parceria estratégica sino-russa, formada há mais de duas décadas em resposta ao mau manejo dos EUA de seu status hegemónico após a Guerra Fria, iniciou essa tendência. A falta de magnanimidade dos Estados Unidos em relação à Rússia pós-soviética manifestada pela expansão da OTAN, o revolucionarismo americano refletido pelas políticas de promoção da democracia e revoluções coloridas fomentadas pelos EUA , a arrogância e hipocrisia ocidentais com base em sua alegada superioridade enraizada em seu republicanismo levaram a Rússia a abraçar a China. Ambas estas potências procuraram proteger sua respectiva soberania e segurança nacional em face da expansão da OTAN e das instituições internacionais dominadas pelo Ocidente.

Posteriormente, uma China em ascensão mais poderosa do que a Rússia apoiou economicamente as iniciativas dos BRICS e da SCO da Rússia e desenvolveu sua própria atualização dessas ideias – OBORI, que poderia liderar tendo sido seu iniciador, projetista e financiador. A motivação de Pequim é semelhante à de Moscovo, embora os motivos da motivação por vezes sejam diferentes.

Moscovo opôs-se com unhas e dentes à expansão da OTAN; Pequim sentiu que Washington resistiria à ascensão da China ao status de superpotência e de um sistema internacional bipolar ou multipolar.

A Rússia temia revoluções coloridas em sua vizinhança e entre seus aliados na Europa Oriental (Sérvia e Ucrânia), Eurásia (Geórgia e potencialmente também noutros lugares), Síria e em casa. Pequim temia interferência ocidental, em particular americana, em seus assuntos internos em Taiwan , Tibete e Xingjiang.

Os EUA agora consolidaram e intensificaram ainda mais a parceria estratégica sino-russa por meio da provocação, depois punindo agressivamente e rejeitando ainda mais Moscovo após a invasão da Ucrânia pela Rússia, ao mesmo tempo em que desafiam a China em relação à venda de armas a Taiwan e até ameaçam intervir militarmente para defender a ilha separatista com decisão de Pequim de reuni-la sob a soberania do continente pela força.

Os temores chineses sobre Taiwan devido a essa postura agressiva dos americanos fizeram com que Pequim percebesse a Ucrânia como uma caligrafia escrita na parede. Assim, a China apoiou moralmente a guerra da Rússia na Ucrânia e acelerou os esforços conjuntos com Moscovo para construir um sistema mundial alternativo.

É a China que agora está pedindo a adição de novos membros ao BRICS (Arábia Saudita, Turquia, Argentina e Indonésia, as prováveis ​​adições iminentes) e SCO (Irão). Ambas as partes estão intensificando os movimentos para desdolarizar suas economias e comércio e construir um novo sistema monetário-financeiro projetado que será vinculado aos estados parceiros do BRICS, SCO e OBORI.

Este conjunto interligado de organizações internacionais é uma rede de redes que liga muito do resto – o não-ocidente – já, com muito espaço e razão para haver expansão. As dezenas de estados-membros e observadores dessas organizações já incluem as cinco nações mais populosas do mundo, depois dos EUA – China, Índia, Indonésia, Paquistão e Brasil – e bem mais da metade da população mundial.

Uma razão pela qual há potencial para expansão quase ilimitada é a própria “política de portas abertas” dessas organizações, que não impõe exigências no que respeita ao tipo de regime existente nos possíveis estados-membros. Um regime autoritário é tão bem-vindo quanto um democrático.

Índia democrática, Brasil e África do Sul juntam-se à China e à Rússia autoritárias no BRICS. Índia como um estado observador na SCO. Nenhum estado ocidental está participando de nenhuma dessas iniciativas. O Ocidente está isolado deles, e os líderes do resto, China, Rússia e até a Índia, estão se isolando dele. O resto não-ocidental se absteve de aderir às sanções do Ocidente contra a Rússia, e a Índia democrática expressou simpatia pela posição russa sobre esta e várias outras questões.

Finalmente, lenta mas seguramente, uma anti-OTAN está surgindo entre alguns no "resto". A SCO viu o desenvolvimento de um aspecto militar se infiltrando na instituição desde sua fundação, há cerca de duas décadas. Conduz manobras militares e outras formas de cooperação militar e de inteligência, e seus oito estados membros plenos (China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Índia, Paquistão e Uzbequistão), quatro estados membros observadores (Bielorrússia, Irã, Mongólia) , e Afeganistão), e nove parceiros de diálogo (membros da OTAN Turquia, Arábia Saudita, Egito, Armênia, Azerbaijão, Camboja, Nepal, Catar e Sri Lanka) constituem mais da metade da população mundial. O Irão, um membro observador, está buscando e provavelmente receberá em breve a adesão plena. As limitações de apoio entre o resto do Ocidente em sua guerra pela expansão da OTAN para a Ucrânia foram claramente demonstradas em 20 de julho, quando a cúpula do MERCOSUL dos estados latino-americanos Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai se recusou a permitir que o presidente ucraniano Volodomyr Zelenskiy discursasse na reunião. https://www.barrons.com/.../mercosur-trade-bloc-denies...).

Ao mesmo tempo, China, Rússia e Irão estão prestes a realizar manobras militares navais na Venezuela com foco em uma possível invasão dos EUA em nome/a pedido da Colômbia (https://10news.org/2022/07/for-the-first -time-russia-iran-and-china-will-conduct-military-maneuvers-in-venezuela/).

O Ocidente pode achar mais de seu interesse permitir que o que considera os sistemas autoritários menos eficientes persista entre seus concorrentes, se assim o preferirem, ao mesmo tempo em que fortalece seus próprios sistemas cada vez mais insuficientemente republicanos e engaja seus concorrentes no comércio e no desenvolvimento.

Se a governança republicana é realmente superior – e eu acredito que seja – então, com o tempo, outros descobrirão isso. Mas o modelo tem que ser convincente e não forçado a sua adoção.

Enquanto isso, nós e nossos concorrentes no Ocidente deveríamos voltar às mesas de negociação para acabar com a guerra na Ucrânia, criar novas arquiteturas políticas e de segurança europeias e globais, resolver disputas económicas e comerciais e trabalhar para integrar a economia global em um contexto mais equilibrado, mas ordem económica ainda competitiva e descentralizada que protege todos os estados das maquinações de globalistas autoritários e grandes potências intransigentes.

A outra opção para tudo isso – isolamento duplo, um mundo dividido, caos socioeconómico crescente e confronto militar – poderia terminar de forma extremamente desagradável e talvez não menos grave para o Ocidente.

terça-feira, 26 de julho de 2022

DOCUMENTOS LIBERTADOS: CONSELHEIRO DO FACEBOOK "BOT" SECRETAMENTE EM PAGAMENTO DA AGÊNCIA DE MUDANÇAS DE REGIMES DOS EUA



Por Kit Klarenberg


Documentos partilhados com a MintPress revelam que a Valent Projects – uma empresa de comunicação sombria que assessora plataformas de mídia social, como o Facebook, em supostas campanhas de influência on-line apoiadas pelo Estado – recebeu US$ 1,2 milhão da frente de inteligência dos EUA USAID, por "combater a desinformação e o suporte a comunicações".

Essa relação até agora nunca foi reconhecida publicamente, e o resultado não se reflete nas contas publicadas da empresa.

Na direção de Valent, o Facebook purgou um grande número de contas e páginas sudanesas críticas ao governo apoiado pelo Ocidente, ajudando a manter uma controversa administração civil e militar no poder. Há também suspeitas de que a empresa pode ter desempenhado um papel na supressão em massa de vozes etíopes on-line apoiando o governo de Abiy Ahmed, e se opondo às tentativas dos EUA de derrubá-lo.

Valent Projects é a criação de Amil Khan, um veterano jornalista da BBC e da Reuters que se tornou profissional britânico de guerra de informações adjacente à inteligência. Por muitos anos, Khan trabalhou em projetos secretos do Ministério das Relações Exteriores na Síria. Lá, ele fez campanhas secretas contra o público nacional e internacional, treinou jornalistas e ativistas da oposição ostensivamente independentes para se comunicar efetivamente com a mídia, e forneceu apoio à propaganda a numerosos grupos armados treinados, financiados e armados por Londres e Washington.

Perversamente, mas talvez sem surpresas, dada a sua história profissional, Khan é agora um componente influente e bem remunerado da indústria internacional de contra-desinformação. Ele e sua empresa recebem grandes somas de uma variedade de clientes proeminentes – nem todos anunciados – para uma variedade de serviços duvidosos, incluindo o gerenciamento de campanhas de astroturf on-line e a identificação de supostas propagandas estrangeiras e "operações de informação" apoiadas pelo governo inimigo on-line.

A Khan considera a Valent Projects como "uma agência digital integrada que trabalha com clientes que querem fazer o bem no mundo". Mas documentos internos da empresa passados a este jornalista revelam anonimamente que sua desinformação que estoura esforços equivalem a um mecanismo de censura estatal profundamente sinistro.

Não há indicação de que Khan forneceu redes sociais de suas conexões comerciais à USAID ao fazer representações a eles sobre suposto "comportamento inautêntico", "atividade coordenada" e contas de trolls e bots em suas plataformas – representações que resultam em ativistas independentes, jornalistas e outros sendo permanentemente suspensos, e dissidências esmagadas online.

Por definição, essa atividade representa uma grave, invisível e totalmente inexplicável ameaça à capacidade de jornalistas independentes, acadêmicos, ativistas e cidadãos comuns em todo o mundo serem ouvidos online, se suas perspectivas contrariarem narrativas ocidentais estabelecidas. E representa mais um exemplo sinistro de como as principais plataformas de mídia social foram insidiosamente cooptadas e corrompidas pelos interesses de segurança nacional.

PROMOVENDO NOSSOS HOMENS NO SUDÃO

O papel ativo da Valent em obrigar as principais plataformas de mídia social a tomar medidas contra "redes" de trolls e bots em outros lugares foi bem divulgado. Em junho de 2021, por exemplo, 53 contas no Facebook, 51 páginas, três grupos e 18 contas do Instagram no Sudão, com mais de 1,8 milhão de seguidores "que visavam o público interno", ligados a indivíduos associados a um partido de oposição nacional, foram sumariamente purgadas.

"Encontramos essa rede depois de revisar informações sobre algumas de suas atividades compartilhadas por pesquisadores da Valent Projects", afirma um relatório da Meta sobre "comportamento inautêntico" naquele mês.

Esta foi uma das muitas defenestrações em massa de usuários de mídia social no Sudão realizadas pelo Facebook no período entre o golpe de abril de 2019 que derrubou o presidente de longa data Omar al-Bashir, e a tomada de poder pelos militares em outubro de 2021, ao qual Valent era central ou próximo.

Esses relatos, geralmente associados a elementos da oposição no país, foram várias acções alegadas ter se envolvido em "comportamento inautêntico coordenado" ao disseminar conteúdo crítico ao governo militar e civil do país, "[promovendo] interesses russos" e outras atividades malignas.

Embora alguém seja perdoado por concluir a partir do relatório "comportamento inautêntico" da Meta de que Valent se aproximou da rede social em uma capacidade independente, a empresa estava de fato agindo em nome do Escritório de Iniciativas de Transição (OTI) da Agência da USAID, que "fornece assistência rápida, flexível e de curto prazo direcionada à transição política chave".

Este é um eufemismo orwelliano para facilitar a mudança de regime. Embora nunca tenha sido admitido no mainstream, e duramente negado por funcionários em Washington, a USAID desde sua criação em 1961 serviu como um Cavalo de Tróia da inteligência dos EUA, ajudando a CIA e outras agências a minar governos "inimigos".

A penetração da Agência no Sudão após o golpe de 2019 foi extensa. Um explicador oficial da USAID diz abertamente que o evento representou uma oportunidade "histórica" para "mais interesses dos EUA" no país e na região mais ampla, sugerindo fortemente que o governo civil e militar de compartilhamento de poder foi criado pela OTI.

A administração recebeu então amplo apoio financeiro e material da USAID, seus representantes coordenando estreitamente com o gabinete do primeiro-ministro sudanês para "combater a desinformação e a desinformação". A Agência também financiou meios de comunicação independentes e ONGs, e apoiou "civis que defendem reformas democráticas", a fim de reforçar seu governo.

Numerosos relatórios de organizações líderes de direitos humanos publicados durante os dois anos de operação do executivo documentaram corrupção desenfreada e abusos flagrantes de poder por parte das autoridades, incluindo repressão assassina a protestos, prisão de ativistas sem acusação ou julgamento e fechamento de meios de comunicação da oposição. No momento em que a administração se desintegrou, não conseguiu implementar quase todas as reformas institucionais e legais delineadas em sua carta constitucional fundadora.

No entanto, não se sabe disso a partir de declarações de autoridades americanas. Em setembro de 2021, a chefe da USAID e notória falcão de guerra Samantha Power saudou o "esperançoso... progresso" em "alcançar um futuro democrático, inclusivo e pacífico beneficiando todos os sudaneses".

Para dizer o mínimo, a USAID tinha um interesse significativo em manter essa ficção grosseiramente distorcida, e silenciar detratores do executivo de compartilhamento de poder. Foi, sem dúvida, calculado que Washington se envolveu abertamente em redes sociais convincentes para desplataformar os denigradores da administração de má reputação, porém, prejudicaria ainda mais sua legitimidade no país e no exterior.

Daí a necessidade de empregar Projetos Valent para atingir esse objetivo, e dar uma imprimatur legitimante de "expertise" ostensivamente independente à censura estatal insidiosa.

'DESINFORMAÇÃO, DIVISÃO E GUERRA'

Também há dúvidas sobre o papel de Valent na Guerra Civil da Etiópia, que se arrasta desde novembro de 2020, e a censura online em massa que acompanhou a luta amarga.

O que começou como uma escaramuça regional limitada na qual as forças do governo responderam a ataques à infraestrutura militar e atrocidades perpetradas contra civis pela Frente de Libertação Popular de Tigray (TPLF) eventualmente passaram a engolir grande parte do país. Um movimento político-cum-partido que governou o país entre 1991 e 2018, o novo governo em Adis Abeba designou o TPLF como um grupo terrorista.

Durante seu período no poder, o TPLF, apoiado pelos EUA, fez da Etiópia "um dos lugares mais inóspitos do mundo", realizando ações cruéis "com a marca dos crimes contra a humanidade", segundo a Human Rights Watch. Bilhões incontáveis fornecidos em ajuda financeira foram desviados por funcionários do Estado e espirituosos para fora do país, e a Etiópia tornou-se o segundo pior carcereiro de jornalistas do continente.

Este histórico notório se reflete na conduta do TPLF na guerra civil. O grupo cometeu inúmeras atrocidades, incluindo estupros de gangues e múltiplos massacres de civis, e usou crianças extensivamente como escudos humanos. No entanto, esses abusos mal foram reconhecidos pelos jornalistas ocidentais.

Os esforços do governo eleito para acabar com o derramamento de sangue, e o tempo no cargo em geral, não foram sem culpa. Mas a administração, evidentemente, representa uma mudança bem-vinda para os eleitores etíopes, que a reelegeram em um deslizamento de terra esmagador em meados de 2021, mesmo com a carnificina instigada pelo TPLF em ritmo acelerado. No entanto, os meios de comunicação corporativos têm consistentemente enquadrado a acusação das autoridades sobre a guerra como um ataque assassino e não provocado à população em geral, com acusações de fome artificialmente fabricada, atrocidades em massa e limpeza étnica, se não genocídio total repetidamente abundando – embora nunca comprovado.

Autoridades em Washington têm em intervalos regulares também aberta e ansiosamente defendido o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Etiópia, se não botas dos EUA no chão. Tais comentários são comuns em acúmulos de intervenção militar ocidental.

Em novembro de 2021, o jornalista independente Jeff Pearce divulgou uma gravação vazada de uma cúpula secreta do Zoom no início do mês entre diplomatas atuais e antigos dos EUA, Reino Unido e da UE e um representante sênior da TPLF. Durante a reunião, o TPLF foi ativamente encorajado a avançar sobre a capital da Etiópia e tomar o poder via força, o que apenas confirmou suspeitas de que Adis Abeba havia sido designado por Washington para a mudança de regime.

Em resposta a essa agressividade, muitos etíopes, membros da grande diáspora do país, e repórteres e pesquisadores independentes foram às redes sociais e começaram a coordenar através de aplicativos de mensagens para combater a propaganda de guerra perpetuada por políticos ocidentais, jornalistas e think tanks, em prol da agressão e exploração dos EUA em todo o Chifre da África.

Sua luta coletiva deu origem ao movimento No More, seu nome um apelo conciso, mas poderoso, para acabar com a "desinformação, divisão e guerra" em Adis Abeba e além – uma hashtag correspondente se espalhou como fogo nas plataformas de mídia social, e serviu como um grito de guerra em muitos protestos nas principais capitais ocidentais, onde etíopes e eritreias marcharam lado a lado contra o conflito e a intromissão imperial.

Esses esforços desafiaram de forma muito eficaz o consenso dominante sobre a guerra civil, no processo de sublinhar amplamente o potencial poder da mídia independente e das redes sociais. Se não fosse pelo trabalho de Crusading de No More et al, parece quase certo que Washington teria encenado alguma forma de intervenção direta para ajudar o TPLF a derrubar o governo etíope.

Isso só pode ser considerado uma tremenda conquista para o poder das pessoas. Mas a Valent Projects tinha ideias muito diferentes. Entre os documentos vazados revisados pela MintPress está um relatório sobre "comportamento inautêntico" e "redes coordenadas" on-line relacionadas à guerra civil etíope produzida pela empresa em maio de 2022.

Ele enquadra o aumento sísmico do clamor popular nos últimos 18 meses como um "complexo e sofisticado esforço de manipulação on-line" por parte de Adis Abeba, com os governos chinês e russo "apoiando, se não dirigindo" vastos exércitos de contas de trolls e bots para apoiar essa atividade, e promulgando narrativas "anti-imperialistas" através das mídias sociais para manipular "audiências específicas, Como parte de uma "campanha de influência on-line orquestrada".

Os métodos pelos quais Valent chega a essas conclusões sensacionais deixam muito a desejar. Para ser franco, seu relatório é um patchwork mal tecido de falácias lógicas peculiares, teóricos da conspiração paranoica, não sequiturs, alegações difamatórias e falsas, conjecturas conspiratórias, julgamentos de valor não suportados e inexplicáveis, e erros analíticos amadores.

Por exemplo, a suposição inicial da empresa – por razões não declaradas – era a esmagadora maioria das contas tuitando #NoMore eram automatizadas. Sua equipe de pesquisa analisou, portanto, 150 contas que usaram a hashtag com mais frequência usando botômetro para validar essa hipótese.

Apenas 20% foram considerados bots "prováveis", obviamente indicando que a maioria dos usuários eram pessoas reais. Mas Valent, em vez disso, concluiu que a "operação" russa e chinesa era de fato tão sofisticada, "muitas contas inautênticas" simplesmente escapou da detecção.

Para reforçar essa conclusão duvidosa e autoperpetuante, Valent "isolou" 49 dessas contas, que exibiam dados de localização, e descobriu que 30 haviam tuitado de seis "locais idênticos, dentro e fora da Etiópia". Isso sugere que todos eles estavam sendo executados "por um grupo individual ou pequeno de atores", a fim de criar a falsa impressão de que as interações entre essas contas eram "conversas online orgânicas".

Um site supostamente ligado a várias contas era a mundialmente famosa Trafalgar Square. Valent cita isso como "um sinal claro de falsificação", embora uma explicação muito mais lógica seja que esses usuários simplesmente listaram Londres como sua localização em seus perfis.

Trafalgar Square marca o ponto de onde todas as distâncias até a capital britânica são medidas, e assim representa o epicentro da cidade. Pesquisas por "Londres" através de mapas online invariavelmente diretos para a área como resultado. Como nativo da cidade e residente até hoje, é notável que Khan aparentemente não sabia disso.

SUPRESSÃO DIRECIONADA

Uma planilha do Excel que acompanha lista um grande número de contas que tuitaram conteúdo relacionado à guerra civil, dividido pela Valent em "sementes" – "contas que produzem conteúdo original e o introduzem no discurso"; "super-spreaders – "contas que pegam esse conteúdo e o amplificam"; e "endossadores" – "contas que interagem com o conteúdo para dar a aparência de engajamento orgânico às interações". Cada usuário também recebe um ranking botômetro de cinco.

Entre os relatos estão dezenas de etíopes, incluindo acadêmicos e ativistas, e jornalistas e pesquisadores ocidentais anti-imperialistas. Grande parte da taxa de contingente etíope é altamente alta na escala botômetro, embora testes acadêmicos mostrem que o software é "impreciso quando se trata de estimar bots", produzindo volumes significativos de falsos positivos e negativos, "especialmente" então quando as contas tweetam em um idioma diferente do inglês.

Sublinhando a imprecisão do Botometer, a conta oficial do meio de comunicação independente Breakthrough News está classificada em 3,3 na escala de inautenticidade, e destacada na planilha em vermelho ameaçador.

A Descoberta e seus fundadores Eugene Puryear e Rania Khalek aparecem repetidamente no relatório. Em novembro de 2021, eles viajaram para Adis Abeba para realizar relatórios in loco sobre a situação, o que Valent afirma estranhamente ser o componente inicial de uma "fase" dedicada da "operação de influência política" da China e da Rússia relacionada à guerra civil.

Isso se baseia na base falsa de que a tomada – que não recebe financiamento estatal ou corporativo, e é financiada principalmente através de doações e assinaturas de espectadores – é na verdade "apoiada pela Rússia".

A existência de tal "fase" é reprimida pela observação de que outras figuras falsamente acusadas de estarem "ligadas aos interesses do Estado russo" também se tornaram "mais ativas na formação do discurso" nas mídias sociais neste momento, empurrando uma narrativa "anti-imperialista" para "públicos de esquerda".

Mais uma vez, uma explicação totalmente mais sã poderia ser que o interesse e a produção de ativistas e jornalistas anti-imperiais e independentes foram estimulados por desenvolvimentos contínuos na crise, e eles relataram sobre eles em conformidade. Afinal, novembro foi quando a já mencionada gravação bombástica vazou e quando o TPLF simultaneamente expressou um desejo publicamente de empurrar para Adis Abeba.

Esse foi certamente o caso em meu respeito. Destaco-me proeminentemente no relatório como resultado de ter publicado independentemente um boletim substack sobre a gravação vazada, e Valent nivela uma série de acusações selvagens contra mim. Por exemplo, uma série de tweets sobre a empresa e Khan postados no início de dezembro de 2021 é enquadrado como um "ataque doxxing" que "demonstrou uma consciência das operações internas da Valent" e "sugeriu acesso às informações obtidas através de links de espionagem/segurança".

A "sofisticação" desse "ataque", argumenta o relatório, "reforça ainda mais a visão" de que a Rússia estava gerenciando uma "operação pró-etíope" de alto nível nas mídias sociais, apesar dos tweets estarem completamente sem relação com a Etiópia, e este jornalista não ter a menor ideia de que a empresa estava envolvida em trabalhos relacionados à guerra civil neste momento.

O relatório continua lamentando que, apesar de Valent relatar esses tweets no Twitter, a empresa não tomou nenhuma ação, o que se diz sugerir "uma falta de compromisso por parte da plataforma para aplicar suas políticas declaradas". Na realidade, a falha de resposta do Twitter foi provavelmente devido às informações incluídas nos tweets que estão sendo obtidas dos mecanismos de busca da internet e de recursos acessíveis publicamente, como o LinkedIn, e, portanto, nenhuma regra realmente foi quebrada.

‘TRANSIÇÃO POLÍTICA CHAVE'

Tal irracionalidade, inaptidão e incompetência seria divertida, exceto o enquadramento de valente de atividades online legítimas e orgânicas por atores genuínos da sociedade civil como atores da sociedade civil genuína como malignos, orquestrados, falsificados, inimigos dirigidos pelo Estado e em violação das regras estabelecidas da plataforma poderia muito bem ter influenciado as plataformas de mídia social a suprimir, se não a proibição total de um grande número de usuários, distorcendo perspectivas públicas e prejudicando reputações e meios de subsistência no processo.

Jornalistas independentes nomeados em documentos valentes, como o colaborador da Sputnik Wyatt Reed, disseram à MintPress que seu alcance online ruiu depois que eles relataram sobre a guerra civil. Muitas das contas sinalizadas pela Valent como bots – provavelmente erroneamente – foram permanentemente suspensas. Outros proeminentes ativistas pró-etíopes não nomeados no relatório, incluindo o cofundador do No More Simon Tesfamariam, também foram banidos sem aviso, explicação ou recurso. Enquanto isso, figuras proeminentes se envolveram em um discurso de ódio sobre os etíopes e nenhuma ação foi tomada.

Rania Khalek também alega que houve um "enorme mergulho" nas visualizações de vídeos inovadores relacionados à Etiópia depois que eles viajaram para Adis Abeba, apesar de sua produção inicial sobre a crise gerando um grande número. Jeff Pearce, que está listado na planilha como "historiador/propaganda [sic]", acredita que sua conta no Twitter agora será banida. Pearce disse à MintPress que,

Estou muito chateado que Valent tem a ousadia de difamar a mim e aos meus colegas como ativos do Kremlin, ou parte de alguma operação de informação dirigida por Moscou. É mais do que ridículo e insultante. Eu condenei publicamente a invasão da Rússia à Ucrânia em várias ocasiões – você pode assistir a um discurso que fiz sobre a guerra no início deste ano no meu canal no YouTube."

"Viajamos à Etiópia várias vezes, entrevistamos testemunhas, investigamos massacres, vimos hospitais, universidades e museus vandalizados e saqueados pelo TPLF", acrescentou. "Publiquei documentos que provam que os funcionários da ONU ignoraram crimes de guerra e não fizeram nada para ajudar seus próprios funcionários quando foram agredidos e sequestrados. Você pode fazer o que quiser, mas não pode transformar a realidade de mais de 100 milhões de pessoas."

CONTRA-DESINFORMAÇÃO COMO GOLPE DE ESTADO

Se o trabalho de Valent na Etiópia também foi conduzido para a USAID é uma questão aberta, mas os paralelos com suas operações sudanesas são claros e coaduns. Pode ser significativo que Samantha Power tenha sido uma das vozes mais proeminentes agitadas pela intervenção dos EUA na guerra civil, declarando em agosto de 2021 que "todas as opções estão sobre a mesa" para lidar com a crise.

Além disso, o relatório Valent sobre "comportamento inautêntico" afirma que a empresa identificou "operações de informação no Oriente Médio e na África", enquanto outros documentos vazados referem-se a Valent ajudando a "apoiar governos recém-democratizados" a lidar com a "desinformação" para a USAID – sugerindo que vários outros países, e suas populações, na mira da Agência, também estiveram na linha de fogo da visão distorcida de Khan.

É evidente que há uma necessidade urgente de que as plataformas de mídia social revisem toda e qualquer suspensão motivada por informações fornecidas pela Valent Projects. É inevitável que um número incontável de jornalistas, ativistas, acadêmicos e vozes autênticas da sociedade civil tenham sido expurgados nos motivos mais absurdos e injustos imagináveis como resultado das intervenções de Khan. A única questão é quem foi o alvo, e onde.

UCRÂNIA NO CÉREBRO

Em 7 de junho, foi revelado que Khan também estava trabalhando em estreita colaboração com o jornalista britânico Paul Mason em um esforço para desplataformar a Zona Cinza, como parte de uma cruzada pessoal mais ampla contra a anti-guerra, anti-imperialista que restou sobre a questão da Ucrânia.

E-mails vazados entre os dois expuseram como Mason sugeriu submeter a Grayzone – que ele acreditava ser uma operação de inteligência chinesa e bizarramente – para "desplataforma implacável" através de ataques "legais nucleares completos", sondas oficiais por órgãos do governo e cortar o site e seus colaboradores de fontes de doação online, como PayPal.

Este foi um destino que a MintPress News, seu fundador Mnar Adley e o escritor sênior Alan MacLeod sofreram em maio deste ano – um desenvolvimento notório mason falou de aprovação nos e-mails vazados. Na realidade, a MintPress não apoia o governo russo, e funcionários como MacLeod condenaram publicamente Vladimir Putin por suas ações.

No entanto, o conflito na Ucrânia aumentou o poder dos governos ocidentais de ditar diretamente o que é ou não é verdade, e quais são suas populações e não podem saber, exponencialmente. No entanto, sua capacidade de distorcer e censurar no exterior é limitada, se não totalmente em declínio – e é aí que entra a Valent Projects.

Como tal, os documentos vazados revisados pela MintPress iluminam um propósito até então inexplorado de supressão on-line e desplataforma: mudança de regime. Filtrando pontos de vista problemáticos e fatos inconvenientes nos países-alvo, os governos podem ser desestabilizados, e quem ou o que os substitui entrincheirados no poder, com audiências nacionais e estrangeiras privadas de acesso a todo e qualquer ponto de vista crítico.

À medida que a Nova Guerra Fria se torna consideravelmente mais quente a cada dia, os serviços de Khan certamente se tornarão cada vez mais procurados. Nem ele nem seu estado e patrocinadores quase estatais podem ter sucesso.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

AFUNDANDO A PAZ NA EUROPA

No momento em que os Anglo-Saxões conseguiram já excluir a Rússia do Conselho da Europa, e se aprestam para a impedir de participar nas reuniões da OSCE, manobram agora para afundar a União Europeia ao criar uma estrutura concorrente na Europa Central : A Iniciativa dos Três Mares. Ao fazê-lo, retomam um velho projecto polaco que visa desenvolver essa região preservando-a de qualquer influência alemã ou russa.


Por Thierry Meyssan

O Conselho de Chefes de Estado e de Governo da União Europeia decidiu, em 23 de Janeiro de 2022, conceder à Ucrânia o estatuto de país candidato à adesão. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, precisou que o caminho será longo (a Turquia tem este estatuto há 23 anos) para elevar este país ao nível exigido pela União, tanto em matérias económicas quanto políticas.

O gabinete do Presidente ucraniano havia já especificado que Kiev não espera ingressar na União, hoje ou amanhã, porque dispõe de um outro projecto, mas que o estatuto de candidato abre a via a um forte apoio financeiro de Bruxelas para que se possa aproximar dos padrões da União.

Com efeito, a Ucrânia partilha o projecto polaco (polonês-br) da Intermarium : uma aliança de todos os Estados situados entre o Mar Báltico e o Mar Negro.

A INTERMARIUM CONTRA A UNIÃO EUROPEIA

Este projecto assenta quer numa realidade geográfica como num passado histórico: a « República das duas Nações » (Coroa da Polónia e Grão-Ducado da Lituânia) dos séculos XVI a XVIII. Ele foi formulado a primeira vez durante a Revolução Polaca de 1830, pelo Príncipe Adam Jerzy Czartoryski, depois durante o período entre guerras pelo General polaco Józef Piłsudski, sob o nome de « Federação Międzymorze ». Piłsudski concebeu paralelamente uma ideologia visando libertar todos os povos da Europa Central da sua integração nos impérios germânico e sobretudo russo, o « prometeísmo ». Tal como o Titã, ele prometia aos homens progresso técnico que lhes permitisse libertarem-se dos seus suzeranos. Na prática, ele preferia os Germânicos aos Russos e não hesitou em aliar-se aos Austro-Húngaros e aos Alemães contra o Czar. Em 2016, uma terceira versão deste projecto foi apresentada pelo Presidente polaco, Andrzej Duda, sob o nome de «Iniciativa dos Três Mares » (o terceiro mar é o Adriático). Participaram nela onze estados. Eles passaram a doze há poucos dias.

Este projecto oferece, em princípio, uma resposta política legítima à ausência de fronteiras físicas na grande planície da Europa Central: mais vale unir-se do que se submeter ou fazer a guerra. No entanto, as coisas não são tão claras como parece : a República das duas Nações era uma confederação que permitia tanto ao Reino como ao Grão-Ducado manter o seu próprio funcionamento, enquanto Piłsudski concebia uma Federação na qual todos os povos se fundiriam e onde os Polacos teriam o predomínio. Todos os movimentos nacionalistas da Europa Central se referem à República das duas Nações, mas tiram daí conclusões muito diferentes.

Para os banderistas ucranianos, a República das Duas Nações é a herdeira da Ruténia criada pelos Vikings suecos, os Varégues ( ou Varangianos-ndT), o que é um pouco exagerado na medida em que seus territórios não se sobrepõem. Quando muito, pode dizer-se que culturalmente essas entidades têm pontos comuns. Para o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, a República das Duas Nações é um bom exemplo de confederação que permite libertar-se ao mesmo tempo da Rússia... e da Alemanha que domina a União Europeia.

É por causa dos dirigentes políticos polacos e ucranianos apostarem neste projecto comum de Confederação Intermarium que o Presidente Zelensky pôde considerar, sem corar, ceder a Galícia Oriental à Polónia [1]. No entanto, em ambos os países, a extrema direita (no sentido totalitário do período entre guerras) pretende usar essa política para fazer avançar as suas ideias raciais.

A Polónia jamais jogou o jogo da União Europeia, da qual é membro desde 2004. Durante o seu período de candidatura à União, não hesitou em encaixar somas enormes, destinadas a reformar a sua agricultura, e em gastá-las para comprar aviões de guerra norte-americanos e ir fazer a guerra no Iraque sob ordens de Washington. Este truque de mãos havia sido concebido pelo Americano-Polaco Zbigniew Brzezinski e pela Americana-Francêsa Christine Lagarde [2]. Nada mudou: hoje Varsóvia está em perpétuo litígio com Bruxelas, nomeadamente a propósito do seu sistema judicial. A Ucrânia não terá qualquer problema em fazer o mesmo jogo duplo.

Este é o problema principal dos povos da Europa Central : eles procuram, legitimamente, afirmar-se sem os seus grandes vizinhos russo e alemão, mas não conseguem assumir-se sem lutar contra eles. No passado, esta doença pressionou-os sempre a confrontarem-se entre si.

O Príncipe Adam Jerzy Czartoryski acabou a sua vida no exílio em Paris e o General Piłsudski estabeleceu a sede do seu movimento prometeico igualmente em Paris. Em ambos os casos, tratava-se de escapar, ao mesmo tempo, à Alemanha e à Rússia. A lembrança deste período deu lugar, em 1945, à criação de uma rede de emigrantes da Europa Central trabalhando primeiro para o Vaticano, depois para os Serviços Secretos franceses e finalmente para os Anglo-Saxões (rede igualmente denominada Intermarium [3]). Reuniu os principais dirigentes em fuga aos Ustashas croatas, à Guarda de Ferro romena etc. Depois, em 1991, foi a constituição do « Grupo de Visegrád » (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia). Hoje, os partidários deste projecto viram-se para os Anglo-Saxões, daí o apoio de Washington e Londres a Varsóvia e a Kiev. Assim, a Cimeira (Cúpula-br) da Iniciativa dos Três Mares em Varsóvia, em 2017, recebeu o Presidente norte-americano, Donald Trump. Enquanto que na Cimeira de 20 de Junho de 2022, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, intervindo por vídeo, solicitou e obteve de imediato a adesão do seu país.

O interesse dos Anglo-Saxões pelo projecto Intermarium é antigo. Um dos pais da geopolítica anglo-saxónica, Sir Halford Mackinder, havia identificado a Europa Central como o coração (Hartland) da Eurásia. Para ele, o Império Britânico só poderia controlar o mundo controlando primeiro esta região. Um dos seus discípulos, o Primeiro-Ministro Boris Johnson, precipitou-se pois para Kiev a fim de dar o seu apoio ao Presidente Zelensky. Todos os geopolíticos anglo-saxões retomaram as ideias de Mackinder, incluindo, é claro, Zbigniew Brzezinski, o qual foi com o Straussiano Paul Wolfowitz uma das duas principais figuras do colóquio de Washington, em 2000, que marcou a aliança entre os Estados Unidos e a Ucrânia [4].

Infelizmente, aqueles que empurram os Estados Unidos para o apoio do projecto Intermarium são figuras representativas do nacionalismo de extrema-direita. Assim, os conselheiros dos Presidentes Dwight Eisenhower e Ronald Reagan que os levaram a adoptar o conceito de « nações cativas (da URSS) » eram todos antigos colaboradores dos nazis, membros do Bloco das Nações Anti-Bolcheviques [5] ; os que organizaram o pré-citado congresso de 2000 foram os seus filhos; e hoje o mais importante deles é o Americano-Polaco Marek Jan Chodakiewicz, que não parou de minimizar os crimes dos nazis [6].

Todos os membros da Iniciativa dos Três Mares são membros da UE, salvo a Ucrânia. A maior parte considera espontaneamente que ela é para eles muito mais importante do que a UE, embora não tenha os mesmos meios. O facto de a Ucrânia ter a ela aderido três dias antes do reconhecimento do seu estatuto de candidato à UE atesta não só que essa é mais importante para ela, mas também que Bruxelas percebeu muito bem que devia aceitar todos os membros da Iniciativa dos Três Mares para não perder nenhum.

A prazo, esta lógica deverá levar os membros da Iniciativa dos Três Mares a deixar colectivamente a UE quando ela já não lhes for financeiramente proveitosa, porque jamais partilharam os seus objectivos políticos.

Desde logo, toda a arquitetura de segurança do continente é posta em causa. Ela repousava sobre dois pilares, por um lado o Conselho da Europa e por outro a Organização para a Cooperação e Segurança na Europa.

A RÚSSIA EMPURRADA PARA FORA DO CONSELHO DA EUROPA

O Conselho da Europa foi criado em 1949. Tratava-se para certos fundadores de basear a unidade europeia em princípios jurídicos comuns através de um Conselho de Estados e para outros, via uma Assembleia de parlamentares. No fim, juntaram os dois projectos, mas à época mantiveram fora os Soviéticos e seus países irmãos. A Rússia e os membros do Pacto de Varsóvia aderiram logo após a queda do Muro de Berlim.

Este Conselho dotou-se de duas instituições emblemáticas. Em primeiro lugar, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Infelizmente, este politizou-se no decurso dos últimos meses, manifestando uma evidente parcialidade face à Rússia. Por exemplo, reconheceu em Janeiro o direito de um cidadão russo cuspir no retrato oficial do Presidente da Federação da Rússia ( Processo Karuyev v. Rússia). Ou ainda, em Fevereiro de 2022, o direito de um cidadão russo perturbar uma manifestação pró-Putin exibindo um cartaz « Putin, melhor que Hitler! » ( Processo Manannikov v. Rússia). E acaba de censurar a lei russa que foi adoptada após as revoluções coloridas exigindo que as organizações políticas financiadas do estrangeiro o exibam em todas as suas publicações (Processo Ecodefence e outros v. Rússia).

A outra grande instituição, é a Comissão de Veneza que ajudou os Estados recém-independentes a assimilar as regras democráticas —Comissão que, diga-se de passagem, não tem parado de chamar a atenção da Ucrânia sobre os seus procedimentos administrativos e institucionais. [7]—.

Em última análise, os Ocidentais suspenderam o direito de voto da Rússia no Conselho da Europa com a alegação que esta estaria a tentar anexar a Ucrânia pela força. Ao que a Rússia, estupefacta, respondeu que jamais teve essa intenção e que se retirava de uma instituição que se tornara partidária.

A RÚSSIA IMPEDIDA DE PARTICIPAR NAS REUNIÕES DA OSCE

A outra plataforma intergovernamental é a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Ela foi criada por ocasião dos Acordos de Helsínquia, em 1973. Ao contrário das Nações Unidas, não é um local de arbitragem, mas apenas um fórum que permite a todos os actores do continente falar entre si livremente. Foi ela, por exemplo, que adoptou a Declaração de Istambul de 1999, também conhecida como « Carta da Segurança na Europa », que estabelece os dois grandes princípios (1) o direito de cada Estado escolher os aliados a seu gosto e (2) o dever de não ameaçar a segurança alheia garantindo a sua; princípios cujo desrespeito está na raiz do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia [8].

Lembremos que a Federação Russa nunca contestou o direito de ninguém em aderir à OTAN, mas o dos membros da OTAN em albergar bases militares norte-americanas. Os nossos leitores lembram-se que quando o Ministro russo dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br) da Rússia, Serguei Lavrov, escreveu a cada um de seus « parceiros » para lhes perguntar como conciliavam os dois princípios de Istambul com a instalação de equipamentos e pessoal militar norte-americanos na proximidade da Rússia nenhum ousou responder-lhe.

No entanto, a neutralidade deste fórum foi violada no mês de Abril quando novos funcionários da OSCE, mais precisamente antigos militares da OTAN, foram apanhados (pegos-br) em flagrante delito de espionagem no Donbass [9].

Como se isso não bastasse, o Reino Unido acaba de recusar os vistos necessários à delegação russa que devia assistir à Assembleia parlamentar anual da OSCE, de 2 a 6 de Julho de 2022, em Birmingham. Londres, que viola as suas obrigações, refugiou-se atrás das sanções nominais da União Europeia contra cada membro da delegação.

Por consequência, não apenas os documentos assinados pelos 57 Chefes de Estado e de Governo da OSCE deixaram de ter valor, como a administração desta organização se tornou numa arma de guerra e, em última análise, deixará de desempenhar o seu papel de fórum.

A arquitetura de segurança do continente europeu transforma-se, portanto, radicalmente. A prazo, a Europa Central irá formar um bloco, primeiro no seio da União Europeia e de seus candidatos, depois fora da União. A sua Defesa será garantida pelos Estados Unidos. Enquanto tal, as duas partes do continente, Ocidental e Oriental, deixarão de se comunicar. Isto será o culminar do plano dos geopolíticos anglo-saxões. Mas este projecto, se for concretizado, será instável. Primeiro, os Europeus Ocidentais tiveram sempre necessidade da Rússia e, depois, os povos da Europa Central viveram durante muito tempo num campo de batalha. Quando os Cavaleiros Teutónicos e os Cossacos não se enfrentavam no seu território, eles batiam-se entre si. Para que uma paz seja duradoura é preciso haver respeito por todos os protagonistas. Ao destruir todas as instituições de Segurança do continente, torna-se inevitável um conflito generalizado.


Fonte: Rede Voltaire


[1] “A Polónia e a Ucrânia”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Junho de 2022.


[2] «Con Christine Lagarde, la industria estadounidense entra al gobierno francés», por Thierry Meyssan, Red Voltaire , 29 de junio de 2005.


[3] Unholy Trinity: The Vatican’s Nazis, Soviet Intelligence and the Swiss Banks, Mark Aarons & John Loftus, ‎St Martin’s Press (1998).


[4] “Ucrânia : a Segunda Guerra mundial continua”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 26 de Abril de 2022.


[5] Old Nazis, the New Right, and the Republican Party, Russ Bellant, South End Press (1991).


[6] lntermarium: The Land between the Black and Baltic Seas, Marek Jan Chodakiewicz, Routledge (2012).




[8] “A Rússia quer obrigar os EUA a respeitar a Carta das Nações Unidas”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Janeiro de 2022.


[9] “A OSCE expulsa de Lugansk por espionagem”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 19 de Abril de 2022.

domingo, 3 de julho de 2022

A PREPARAR AS NOSSAS CABECINHAS PARA A GUERRA NUCLEAR




Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/07/2022

1. Reunido em mangas de camisa num castelo alemão, o G7 actualizou as sanções à Rússia e as novas verdades sobre a guerra. De facto, foi o G7+1, pois, como sempre, Zelensky esteve presente por vídeo para pedir mais e mais sofisticadas armas, a tempo de poder decidir a guerra antes do Inverno.
Ficou-se a saber que, só dos americanos, ele recebe todos os meses armamento no valor de 7,5 mil milhões de dólares — um festim para as Lockheed Martin dos Estados Unidos. No final e sobre um horizonte de ruínas, alguém há-de ter de pagar isto e suponho que não sejam só os contribuintes americanos, mas todos os da NATO.

2. Na sua intervenção, Zelensky informou os outros de que na véspera os russos tinham atacado com mísseis um centro comercial onde se encontravam mil civis: dez tinham morrido nesse dia, 18 até hoje. Os russos argumentaram que não tinham atacado nenhum centro comercial mas sim um depósito de armas que ficava ao lado e que, ao incendiar-se, atingira com destroços o centro comercial. Como é óbvio, essa versão foi imediatamente descartada, em favor do “crime de guerra”.

3. Ao mesmo tempo que acrescentava o ouro à lista de bens russos cuja exportação passa a ficar proibida, o G7 insurgiu-se contra “o roubo e impedimento das exportações de cereais” ucranianos por parte da Rússia.

E depois de algum imbecil ter dito que pela primeira vez na História a Rússia utilizava a fome como arma de guerra (nunca terá ouvido falar de cercos nem de bloqueios de portos durante as guerras), desta vez o G7 “apelou” à Rússia para levantar o bloqueio aos portos ucranianos do Mar Negro, com Odessa à cabeça. Mas há aqui o típico problema da pescadinha: os russos nunca disseram que impediriam os navios-mercantes de irem buscar os cereais aos portos ucranianos, mas que o que impede isso é eles estarem minados pelos ucranianos. E estes, por sua vez, dizem que se retirarem as minas ficam indefesos perante a frota russa ao largo, pelo que a única saída seria a retirada desta. Mas para onde iria a frota russa? A resposta lógica era para ali ao lado, para a Crimeia e para o abrigo da sua base naval de Sebastopol. Mas isso não tranquilizaria os ucranianos, pois os russos poderiam regressar rapidamente a Odessa. A única coisa que os tranquilizaria era que a frota russa do Mar Negro se retirasse toda dali, atravessasse o Estreito e entrasse no Mediterrâneo — onde, não dispondo de nenhuma base, lhe restaria navegar meio mundo e ir acolher-se à outra costa marítima russa, no Báltico. Ou seja, abandonar o Mar Negro, onde está desde Catarina, a Grande, e deixar a sua costa sul e a Crimeia exposta a ataques navais dos seus inimigos — coisa que Moscovo, obviamente, jamais aceitará. A única solução é, pois, negociar com Putin, coisa que ninguém do lado “justo” quis ou quer fazer, seja qual for a razão. Fazê-lo passar sempre, não apenas pelo responsável pelo desencadear da guerra, que é, mas também pelo criminoso de guerra sempre à mão, é muito mais eficaz tendo em vista o objectivo final.

4. Por iniciativa dos Estados Unidos, os membros do G7 e não só mantêm congelados 300.000 milhões de dólares de reservas russas em bancos ocidentais. Putin respondeu parcialmente decretando que o serviço da dívida externa russa passaria então a ser pago em rublos. Assim fez esta semana, pagando em rublos uma tranche de 100 milhões de dólares à empresa privada que, por sua vez, deveria pagar aos detentores da dívida.

Seguindo ordens de Washington, a empresa não o fez e a Rússia foi declarada em default — a primeira vez desde a Revolução de 1917. Mas o mesmo G7 que acusou a Rússia de ter “roubado” a Ucrânia por ter vendido uma pequena parte de cereais que estavam na Mariupol conquistada aprovou uma ajuda económica de €27 mil milhões à Ucrânia até ao final deste ano, que será em parte financiada com o dinheiro das reservas russas “congeladas”. Congeladas, apropriadas e distribuídas, por ordem de nenhum tribunal, ao abrigo de nenhuma lei internacional e por resolução de nenhum organismo com competência para tal.

5. Por sugestão da secretária do Tesouro norte-americana, Janet Yellen, o G7 decidiu também começar a trabalhar num plano para estabelecer um tecto máximo ao petróleo e gás natural importado da Rússia. Convém recordar que antes de 24 de Fevereiro, a Europa importava 27% do petróleo e 75% do gás natural da Rússia, através do Nordstream I, a preços baratos e com poluição zero no transporte, e preparava-se para abrir o Nordstream II, uma parceria russo-alemã, que Joe Biden, na cara do chanceler Olaf Scholz, declarou imediatamente cancelada. E convém recordar também que os Estados Unidos, desde que adquiriram a tecnologia para explorar o shale gas (gás de xisto), se tornaram auto-suficientes em petróleo e gás, que agora irão exportar para a Europa substituindo-se aos russos, vendendo mais caro, com custos de transporte acrescidos e sendo que o gás deles, o GNL (gás natural liquefeito), envolve a construção de terminais próprios de armazenamento e é o combustível com maior impacto no aquecimento da atmosfera.

Mas, como disse Ursula von der Leyen, “a nossa reflexão estratégica, enquanto democracias, é a de construir o mundo de amanhã com parceiros que partilham das mesmas ideias”, exemplificando, no campo da energia, com os Estados Unidos, o Azerbaijão e o Catar (“Le Monde Diplomatique”, Junho). E poderíamos acrescentar a ‘democracia’ venezuelana, com quem a Administração Biden já abriu negociações com vista a levantar o embargo às exportações de petróleo.
A História está cheia de episódios destes, em que depois da tragédia acontecer, todos se perguntaram “porque é que não vimos o que ia acontecer, porque é que ninguém fez nada para o evitar”. A diferença é que nas tragédias anteriores não havia o factor nuclear.

Obviamente, a proposta de limitar o preço da energia não se aplica a todos os produtores, mas apenas aos russos. Para os outros, nomeadamente os nossos amigos americanos, grandes ganhadores económicos desta guerra, bem podem os europeus, os grandes sacrificados, juntamente com os africanos esperar em vão qualquer sinal de solidariedade: ela vai toda para a Ucrânia e para a NATO.

Resta saber o que têm os russos a dizer a esta extraordinária proposta dos sete senhores em mangas de camisa que deveriam representar as sete democracias liberais mais prósperas do mundo. Porque tudo isto é de uma imensa hipocrisia: a Europa continua a precisar desesperadamente da energia e dos cereais russos, mas, a reboque da NATO e dos Estados Unidos, embarca em bravatas que não apenas contrariam todos os princípios do seu credo liberal, como põem em risco a sua sobrevivência económica por décadas e todas as belas promessas de combate às alterações climáticas, agora substituídas pela reactivação em força das centrais a carvão (defendida até pelos Verdes alemães).

E se Putin se põe a fazer contas ao dinheiro que tem em caixa e ao tempo de guerra que ainda tem pela frente e decide, pura e simplesmente, cortar a energia à Europa?

6. Quem é que manda hoje na Europa? É Boris Johnson? Não, graças a Deus, é inglês. Macron? Não, capitulou em Kiev, juntamente com Draghi. Scholz? Não, é um homem perdido em tudo: ideias, estratégia, parceiros. Von der Leyen? Não, é um peão dos americanos, em cujas mãos pôs o destino da Europa, daqui para a frente condenando a UE e ela própria à irrelevância. Quem manda na Europa é o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Diferentemente de Ursula von der Leyen, ele não é peão dos americanos, é parceiro estratégico deles. E se também subjugou a Europa aos interesses americanos, não foi por falta de visão ou de cautela, foi por convicção, porque esse era o seu objectivo. Stoltenberg é o governador americano da Europa. Ele é quem aparece em todo o lado, anuncia, manda e decide tudo: que a Força de Intervenção Rápida da NATO se vai multiplicar por oito e encostar-se às fronteiras russas, numa típica manobra ‘defensiva’, igual à que conduziu à invasão da Ucrânia; quanto é que isso, mais o reapetrechamento militar, vai custar a cada membro da organização; como é que serão de futuro as relações de cada um com a China (de desconfiança e pré-confronto, já o disse); que leis é que a Suécia tem de alterar para passar a declarar os refugiados curdos como ‘terroristas’, como impõe o sultão Erdogan — esse paladino da paz e dos direitos humanos e que, ao contrário de Putin, não alimenta qualquer desejo de reconstruir um império passado.

Tudo isto, todo este imenso poder, Stoltenberg conquistou-o em breves quatro meses que tudo mudaram, tirando partido da reforma de Merkel na Alemanha, da escabrosa leviandade de Boris Johnson e da senilidade galopante de Joe Biden. E, sobretudo, do trágico e imperdoável erro de cálculo de Vladimir Putin. E tudo isto, todo este poder, todas estas decisões, todas estas mudanças nas nossas vidas, ele impôs aos europeus sem nunca nos consultar, sem nunca nos perguntar nada, apenas manobrando entre os grandes e explorando as suas fraquezas disfarçadas de forças.

Se ninguém o travar, este norueguês que se tornou dono da Europa sem que nenhum europeu tivesse votado nele vai-nos levar até à guerra nuclear com a Rússia. A História está cheia de episódios destes, em que depois da tragédia acontecer todos se perguntaram “porque é que não vimos o que ia acontecer, porque é que ninguém fez nada para o evitar”. A diferença é que nas tragédias anteriores não havia o factor nuclear.

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