O BOSÃO DE HIGGS E AS SUAS IMPLICAÇÕES
No dia em que se comemora a Independência norte-americana, dia em que
os Estados Unidos escolheram para dizer para si mesmos e para o mundo
como eles são uma grande nação, a velha Europa, mergulhada em crise, mas
herdeira de uma gloriosa tradição intelectual, anunciou o que pode ser o
maior feito científico desde o descobrimento do ADN, em 1953.
O "Bosão de Higgs", partícula fundamental que fornece massa a todas
as outras partículas e que, portanto, é responsável por formar
simplesmente toda a matéria do universo, está prestes a ser encontrado.
No último dia 4 de Julho, experiências realizados no Centro Europeu de
Física Nuclear (CERN) mostraram fortes indícios da existência do bosão.
Embora muitos cálculos e novas experiências ainda precisem de ser feitas, é
inegável que nos aproximamos cada vez mais da última fronteira que nos
permitirá entender a origem da matéria, e com ela, a origem do próprio
universo.
O incrível mundo subatômico
Como todos aprendemos na escola, a matéria que nos rodeia é composta
por átomos. Mas os próprios átomos, que antes se acreditavam unos e
indivisíveis, são apenas uma combinação específica de outras partículas
ainda menores: os prótons, neutrons e elétrons. Os prótons e neutros se
agrupam no núcleo do átomo num número específico, dando origem a um
determinado elemento químico: hidrogênio, oxigênio, carbono etc. Os
elétrons, por sua vez, orbitam esse núcleo.
Frequentemente, para representar um átomo, desenhamos um pequena
esfera com os elétrons girando ao seu redor. Isso é assim apenas em
parte. A ideia central está correcta, mas se fôssemos levar em
consideração a escala das coisas, o desenho seria muito diferente. Se o
núcleo do átomo fosse do tamanho de um limão, por exemplo, os elétrons
estariam girando a cerca de 3 quilômetros de distância desse "limão"
(núcleo). Quer dizer, o espaço entre a órbita dos elétrons e o núcleo
atômico é imensamente "grande" (em termos sub-atômicos, obviamente). Daí
tiramos uma primeira conclusão como mínimo impressionante: a maior
parte da matéria que vemos, das coisas e pessoas que tocamos e sentimos é
composta de... vazio.
Assim, ao estudar o mundo subatômico, os cientistas começaram a
descobrir coisas fantásticas. Mas o mais importante: começaram a
perceber que as leis tradicionais da física, a chamada "física
newtoniana" (em referência a Isaac Newton, formulador das leis da
mecânica clássica) simplesmente não se aplicavam ao mundo subatômico.
Por exemplo, na física clássica, qualquer objeto, para dar uma volta
completa em torno de si mesmo, tem que girar 360 graus. Assim ocorre,
por exemplo, com a Terra ou com um casal que dança. Já no mundo
subatómico, existe toda uma classe de partículas que, para dar uma volta
completa em torno de seu próprio eixo, tem que girar... 540 graus, ou
seja, uma volta e meia. Isso parece muito estranho, mas é assim.
Esses estranhos fenômenos observados pelos cientistas deram origem a
uma nova mecânica, a mecânica do mundo subatómico, completamente
diferente da mecânica clássica de nosso mundo visível: a chamada
mecânica quântica.
O "modelo padrão"
Estudar o mundo subatômico é algo muito complicado. Não se pode abrir
um átomo e ver o que existe lá dentro. O que se sabe sobre sua estrutura
interna provém fundamentalmente de experiências que "refletem" essa
estrutura e, obviamente, de muitos cálculos matemáticos. Assim, ao longo
do tempo, foi-se estabelecendo um determinado "modelo" de como seria
essa estrutura interna, os seus componentes, o seu comportamento etc. Isso
não significa que os cientistas façam "especulações" sobre o mundo
subatómico. Muita coisa foi demonstrada com precisão através de
experiências absolutamente incontestáveis, verificadas exaustivamente
por todo o mundo científico. Já outra parte do "modelo" não foi ainda
demonstrada. Mas mesmo o que não foi ainda demonstrado ou descoberto foi
previsto matematicamente. Ou seja, os cientistas não detectaram ainda
algumas partículas subatómicas, mas eles sabem que elas devem estar lá,
só podem estar lá, porque todo o modelo só faz sentido se elas existirem
e estiverem lá.
O "modelo padrão" é, portanto, um enorme (ou minúsculo) quebra-cabeça
que vem sendo montado ao longo de várias décadas através dos esforços
conjuntos de diferentes gerações de cientistas de diversos países. A última peça desse quebra-cabeça é o "Bosão de Higgs", cujos indícios foram encontrados no último dia 4 em Genebra, na Suiça.
O "Bosão de Higgs" e o LHC
A peça faltante no quebra-cabeça do modelo padrão diz respeito ao
seguinte: como se formam as partículas subatómicas? Como elas adquirem
massa, ou seja, como se tornam matéria?
Em 1964 o físico britânico Peter Higgs propôs a hipótese de que
existiria uma partícula específica no mundo subatômico, cuja função
seria justamentre fornecer massa a todas as outras partículas. Essa
partícula, pelo cálculos de Higgs, teria surgido logo após o Big Bang,
há cerca de 15 bilhões de anos atrás, dando origem aos primeiros átomos e
à matéria tal qual nós a conhecemos. No entanto, a hipótese de Higgs permaneceu apenas um modelo
matemático porque não havia condições técnicas de por à prova sua
teoria. Somente em 2008, com a inauguração do LHC (Large Hadron Colider, ou
"Grande Colisor de Hádrons"), um imenso acelerador de partículas de 27
quilómetros de circunferência enterrado na fronteira entre a Suiça e a
França, foi possível dar início às experiências que deveriam demonstrar
a existência do Bosão de Higgs.
O que faz um acelerador de partículas? Basicamente, consiste em dois
tubos circulares dentro dos quais se injectam duas "nuvens" de prótons electricamente carregados. Essas "nuvens" vão sendo aceleradas em direcções contrárias por meio de um sistema de imãs colocados ao longo
dos tubos. Quando as duas nuvens atingem 99,99% da velocidade da luz, os
dois tubos são "conectados" um ao outro (como nos desvios dos comboios),
fazendo com que as duas "nuvens", que giravam em direcções opostas, se
choquem violentamente. A colisão é tão poderosa, que a energia liberada
pode ser comparada (proporcionalmente, é claro) ao próprio Big Bang. Os
prótons literalmente "quebram-se", dando origem a partículas menores, ou
seja, demonstrando de que são feitos. Quanto maior o choque, menor a
partícula gerada e mais a fundo a estrutura subatómica é revelada. Foi
basicamente essa experiência que detectou fortes indício do Bosão de
Higgs no último dia 4 em Genebra. Se não o capturamos ainda, pelos menos
estamos nas suas pegadas...
O que muda com o Bosão de Higgs?
Uma coisa muito importante: a percepção do homem sobre o universo e a
matéria. Se o Bosão de Higgs for encontrado, ficará definitivamente
provado que a matéria pode sim surgir do nada.
Isso abalaria profundamente os alicerces das distintas religiões,
pois várias delas, depois que aceitaram muito a contragosto a ideia do
Big Bang, seguem batendo na tecla de que a matéria do universo não
poderia ter surgido "do nada". O Bosão de Higgs comprovaria justamente
que a matéria não só surgiu do nada, como ainda hoje surge
constantemente do nada e se transforma constantemente em nada. Aceitar
essa ideia é difícil para qualquer pessoa normal exactamente porque se
trata de um fenómeno quântico, ou seja, regido por outras leis que não
as da física clássica. Parece ilógico, absurdo, irracional, mas de
acordo com as leis da física quântica, é um fenômenos tão banal, quanto a
queda de uma maçã ou a travagem de um carro.
"Partícula de Deus"?
O Bosão de Higgs é frequentemente chamado na imprensa de "partícula
de Deus". A conotação ideológica do apelido é evidente: tentar atribuir a
Deus a existência da partícula, mantendo assim uma visão mística do
universo.
No entanto, há dois problemas com esse apelido: o primeiro é que ele
não passa de um mal entendido. Em 1993, o prêmio Nobel de física Leon
Lederman escreveu um livro sobre o Bosão de Higgs, cujo título em inglês
era "The goddamn particle" (literalmente, "a partícula maldita"), em
referência às dificuldades que se enfrentavam para encontrá-la. Mas a
editora de Lederman achou o título muito agressivo e mudou para "The God
particle" (A partícula de Deus), para não afastar o público religioso. O
infeliz apelido acabou pegando e a pobre partícula é chamada assim até
hoje.
O segundo problema é que o Bosão de Higgs justamente afasta ainda
mais a ideia de um deus-criador do universo. Da mesma maneira que Darwin
demonstrou que o homem não necessitou ser criado, pois havia evoluído
de especies anteriores, assim também o Bosão de Higgs demonstrará
simplesmente que a matéria do universo (ou seja, tudo!) não precisou de
um deus para ser formada. Formou-se e organizou-se por si mesma.
Sobre isso, é bom que se esclareça: nenhuma descoberta científica
jamais provará a inexistência de deus, como desafiam os religiosos. Isso
é assim por uma questão lógica. Só se pode provar que algo "existe".
Não se pode provar que algo "não existe". Justamente por isso, o ónus da
prova recai sempre sobre aquele que quer demonstrar a existência de
algo. Mas cada descoberta científica prova, isso sim, que deus não é
necessário. Com o tempo e com o avanço da ciência, assim esperamos, a
hipótese de um ser-criador do céu e da terra ficará cada vez mais
insustentável e as pessoas abandonarão essa ideia de maneira mais ou
menos natural.
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Quais são as partículas elementares da matéria? O que é um bosão? Porque é o de Higgs foi batizado como “partícula de Deus”? Estas são algumas das perguntas a que o físico Carlos Fiolhais responde, a propósito do bosão de Higgs.
António Piedade (AP) – Quais são hoje as partículas elementares da matéria, 100 anos depois do modelo de Rutherford para um átomo, com protões e neutrões num núcleo orbitado por eletrões?
Carlos Fiolhais (CF) – As partículas elementares de matéria são os quarks (que formam os protões e neutrões do núcleo atómico), os eletrões e os neutrinos.
AP – Então o que são bosões?
CF – Bosões são as partículas de campo ou de energia, que asseguram as forças ou interações. As partículas elementares de matéria (quarks, electrões e neutrinos) são, por seu lado, fermiões. Podemos dizer que os fermiões se relacionam graças à troca de bosões: como dois cães que se mantêm unidos porque vão trocando um osso. De outra forma, bosões são partículas que podem ocupar o mesmo estado de energia, ao contrário dos fermiões, que não podem. O nome homenageia Bose, um físico indiano que escreveu a Einstein e que Einstein apoiou.
Um condensado de bosões é um aglomerado de bosões no mesmo estado. Não há condensados de fermiões, a não ser que estes se associem para formar bosões (é o que acontece, por exemplo, com os eletrões na supercondutividade).
CF – Uma partícula de campo ou de energia, que contrasta com uma partícula de matéria. Foi proposta nos anos 60 por Higgs e outros como unidade (grão ou /quantum) de um campo, o campo de Higgs, necessário para dar massa às partículas de matéria.
AP – Em que consiste o modelo padrão da Física?
CF – Trata-se da descrição de partículas de matéria e de campo conhecidas, isto é, dos constituintes da matéria e das interações fundamentais entre elas. Assenta teoricamente em princípios de invariância relativamente a operações de simetria. Uma bela teoria, portanto. Mas os físicos não estão satisfeitos com o modelo, pensam que há mais qualquer coisa…
AP – Qual a importância do campo e do bosão de Higgs para a compreensão da matéria?
CF – Sem esse campo, e o respetivo bosão, não há uma maneira fácil de explicar a massa das partículas de matéria.
AP – Há alguma relação entre o bosão de Higgs e a matéria escura?
CF – Que se saiba não. Mas poderá haver. A matéria escura – matéria que não se vê – e a energia escura – energia antigravitacional – são dois dos mistérios maiores do Cosmos.
AP – Porque é que ainda não podemos afirmar que o bosão encontrado nas experiências ATLAS e CMS é o Higgs?
CF – Encontrou-se um pico à energia de 125 GeV analisando os processos de decaimento que se seguem a choques a altas energias. Falta, porém, saber quais são as propriedades dessa partícula, cuja existência acaba de ser assegurada. Conhecendo a sua energia podem afinar-se as observações.
AP – Qual foi a participação portuguesa nestas experiências?
CF – Há vários físicos portugueses no CERN ou em Portugal a participar nas equipas dos detetores CMS e ATLAS (os resultados do primeiro são mais importantes na descoberta do Higgs).

AP – Quais são os passos que se seguem?
CF – Há que analisar melhor os processos à energia da partícula encontrada.
AP – Porque é que o bosão de Higgs recebeu a denominação de “partícula de Deus”?
CF – Uma brincadeira do físico Leon Lederman, que esteve há anos em Portugal a fazer uma palestra na Figueira da Foz. Deu o título de “partícula de Deus” a um livro que escreveu com um jornalista, provavelmente com o objectivo de maximizar as vendas do livro. A palavra pegou, apesar de ser despropositada. Os físicos não chegaram mais perto de Deus com esta descoberta até porque o papel da física não é a aproximação a uma divindade.
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Carlos Fiolhais explica o que é o bosão de Higgs
Quais são as partículas elementares da matéria? O que é um bosão? Porque é o de Higgs foi batizado como “partícula de Deus”? Estas são algumas das perguntas a que o físico Carlos Fiolhais responde, a propósito do bosão de Higgs.
António Piedade (AP) – Quais são hoje as partículas elementares da matéria, 100 anos depois do modelo de Rutherford para um átomo, com protões e neutrões num núcleo orbitado por eletrões?
Carlos Fiolhais (CF) – As partículas elementares de matéria são os quarks (que formam os protões e neutrões do núcleo atómico), os eletrões e os neutrinos.
AP – Então o que são bosões?
CF – Bosões são as partículas de campo ou de energia, que asseguram as forças ou interações. As partículas elementares de matéria (quarks, electrões e neutrinos) são, por seu lado, fermiões. Podemos dizer que os fermiões se relacionam graças à troca de bosões: como dois cães que se mantêm unidos porque vão trocando um osso. De outra forma, bosões são partículas que podem ocupar o mesmo estado de energia, ao contrário dos fermiões, que não podem. O nome homenageia Bose, um físico indiano que escreveu a Einstein e que Einstein apoiou.
Um condensado de bosões é um aglomerado de bosões no mesmo estado. Não há condensados de fermiões, a não ser que estes se associem para formar bosões (é o que acontece, por exemplo, com os eletrões na supercondutividade).
AP – E o que é o bosão de Higgs?
CF – Uma partícula de campo ou de energia, que contrasta com uma partícula de matéria. Foi proposta nos anos 60 por Higgs e outros como unidade (grão ou /quantum) de um campo, o campo de Higgs, necessário para dar massa às partículas de matéria.
AP – Em que consiste o modelo padrão da Física?
CF – Trata-se da descrição de partículas de matéria e de campo conhecidas, isto é, dos constituintes da matéria e das interações fundamentais entre elas. Assenta teoricamente em princípios de invariância relativamente a operações de simetria. Uma bela teoria, portanto. Mas os físicos não estão satisfeitos com o modelo, pensam que há mais qualquer coisa…
Recriação artística do LHC
CF – Sem esse campo, e o respetivo bosão, não há uma maneira fácil de explicar a massa das partículas de matéria.
AP – Há alguma relação entre o bosão de Higgs e a matéria escura?
CF – Que se saiba não. Mas poderá haver. A matéria escura – matéria que não se vê – e a energia escura – energia antigravitacional – são dois dos mistérios maiores do Cosmos.
AP – Porque é que ainda não podemos afirmar que o bosão encontrado nas experiências ATLAS e CMS é o Higgs?
CF – Encontrou-se um pico à energia de 125 GeV analisando os processos de decaimento que se seguem a choques a altas energias. Falta, porém, saber quais são as propriedades dessa partícula, cuja existência acaba de ser assegurada. Conhecendo a sua energia podem afinar-se as observações.
AP – Qual foi a participação portuguesa nestas experiências?
CF – Há vários físicos portugueses no CERN ou em Portugal a participar nas equipas dos detetores CMS e ATLAS (os resultados do primeiro são mais importantes na descoberta do Higgs).
Peter Higgs a entrar na sala de conferência no CERN, em Geneva, no dia 4 de Julho.
CF – Há que analisar melhor os processos à energia da partícula encontrada.
AP – Porque é que o bosão de Higgs recebeu a denominação de “partícula de Deus”?
CF – Uma brincadeira do físico Leon Lederman, que esteve há anos em Portugal a fazer uma palestra na Figueira da Foz. Deu o título de “partícula de Deus” a um livro que escreveu com um jornalista, provavelmente com o objectivo de maximizar as vendas do livro. A palavra pegou, apesar de ser despropositada. Os físicos não chegaram mais perto de Deus com esta descoberta até porque o papel da física não é a aproximação a uma divindade.