junho 2022
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segunda-feira, 20 de junho de 2022

O OCIDENTE EM DECOMPOSIÇÃO



Por José Goulão

O mundo está a encolher para o Ocidente, esse conceito geopolítico que ignora limites geográficos e pretende submeter o resto do mundo às suas «regras» e «valores partilhados», entre os quais o militarismo, o desprezo pelas pessoas, o expansionismo, a rapina de recursos naturais, a submissão ao casino financeiro e a um papel-moeda de que se desconhece o valor real, a cultura da guerra, a civilização única e cada vez mais alienante.

Direitos humanos e democracia-liberal? Bem, direitos exclusivos de uns humanos que são bastante mais humanos que os outros, a esmagadora maioria; e democracia realmente neoliberal, quer isso dizer assegurada por rituais cumpridos segundo guiões capazes de garantir o domínio absoluto das oligarquias e a financeirização da sociedade de modo a que as pessoas sejam mais abjectos que sujeitos. A maioria vota de tempos a tempos nos «vocacionados» para o poder que garantem esse desfecho, recomendados com recurso a métodos tão ilegais como asfixiantes pela propaganda institucional e a comunicação social de orientação única; o remanescente serve para compor o ramalhete do pluralismo virtual e pronto, respeita-se assim o único regime político aceitável e acima de qualquer crítica.

O mundo está a encolher para o Ocidente por ser essa a ordem natural das coisas uma vez que, em boa verdade, nenhum império sobreviveu às leis do tempo e às dinâmicas da História; e também por causa dos comportamentos do próprio Ocidente perante a guerra que em 2014 levou até à Ucrânia, embora queira fazer acreditar que o conflito se iniciou apenas em 24 de Fevereiro deste ano. Essa é mais uma mentira numa realidade de mentiras em que o próprio Ocidente vive, chegando a acreditar nela; e certamente por isso estamos a assistir a sucessivas rajadas nos próprios pés, acelerando o processo de transformação mundial e condenando o concílio dos senhores do mundo a um processo gradual de decomposição.

Uma clique dirigente à deriva

Apesar de a União Europeia ser conhecida como uma entidade antidemocrática – gerida por executivos não eleitos – autoritária, austeritária, ao serviço de uma percentagem ínfima da sociedade e desprezando os povos com uma arrogância cada vez mais ditatorial, será difícil encontrar na sua história uma clique dirigente tão incompetente e incapaz como a actual – onde ninguém se salva. Esta coincidência que não surpreende, uma vez que a chamada «classe política» é cada vez mais um palanque para medíocres convencidos, gera resultados muito mais trágicos do que em circunstâncias comuns porque se manifesta num momento crucial para a Europa e o mundo; uma época em que não será aconselhável proceder sem estratégia, à deriva, cumprindo ordens ditadas por interesses alheios e contraditórios, com a agravante de essa casta apodrecida o fazer com uma agressividade raivosa e irracional num cenário quase exclusivamente de faz-de-conta. E, contudo, é o futuro de todos e do planeta que está em causa.

Num momento em que sobretudo algumas publicações norte-americanas e britânicas ditas de «referência» começam a reconhecer que a guerra na Ucrânia parece não estar a decorrer segundo os planos e a propaganda ocidental, os dirigentes da União Europeia mantêm-se em negação dessa provável realidade e insistem no reforço das sanções à Rússia e no envio de armas para o regime falido de Kiev e o aparelho nazi que o sustenta. Ouvem-se, é certo, alguns apelos à realização de negociações de paz, designadamente da Itália, mas não passam ainda de vozes a pregar no deserto. A insistência na guerra continua a ser a perigosa aposta da casta dirigente europeia, sempre subserviente ao gang belicista que controla o teleponto do presidente Biden, ignorando até a voz avisada e experiente do dinossauro Henry Kissinger apelando à realização de negociações no prazo máximo de dois meses.

Kissinger sabe, como o sabem também os militares ucranianos que, à revelia de Zelensky e dos corpos nazis, tentam chegar a negociações com Moscovo, que o prolongamento da guerra torna cada vez mais sombrio o futuro da Ucrânia e dos interesses europeus e norte-americanos apostados em «enfraquecer a Rússia». Pode chegar-se ao limite de as necessárias e fundamentais iniciativas diplomáticas chegarem tarde de mais para a dinâmica militar russa, situação que será um triunfo caído dos céus para os círculos mais nacionalistas, reaccionários, expansionistas e neoczaristas de Moscovo capazes de superar o próprio Putin nessas tendências. O maior aliado desses extremistas continua a ser o socialista que faz de chefe da «diplomacia» da União Europeia, Josep Borrell, para quem a guerra em curso só tem solução militar. Uma sentença que continua a prevalecer em Bruxelas.

A obsessão de impor sucessivos pacotes de sanções contra a Rússia é outro sinal da vocação suicida dos dirigentes da União Europeia e que afectará duramente os povos dos Estados membros e de todo o continente, que não as oligarquias e respectivos serventes.

A incompetente mas arrogante presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Layen, disse há poucos dias que a União Europeia não iria cortar a importação de petróleo da Rússia para não desestabilizar o mercado e provocar aumentos de preços que iriam «financiar a máquina de guerra de Moscovo», um argumento que, em teoria, faria algum sentido.

Porém, nos dias a seguir e ao cabo de uma acesa discussão, o Conselho Europeu decidiu, numa notável atitude coerência, aprovar o corte da maior parte das importações de petróleo russo. A decisão foi tão acalorada e difícil que logo surgiram os federalistas do costume, mais federalistas ainda que os federalistas, a defenderem a abolição do sistema de consenso para tomada de decisões no Conselho Europeu para que não aconteçam hesitações em situações tão transcendentes.

Que grande embrulhada!

Pois bem, os chefes de Estado e de governo da União Europeia decidiram que a partir do próximo Natal será suspensa a importação de 65% do petróleo russo. Os restantes 35%, que chegam pelo oleoduto Druzhba, também serão alvo de restrições com as quais se comprometeram a Alemanha e a Polónia. Se assim não for, os nazis de Kiev já ameaçaram bombardear a secção do oleoduto que passa pela Ucrânia.

Parece tudo fácil: a União Europeia deixa de importar petróleo da Rússia e vai buscar as quantidades equivalentes a outras fontes, nem que seja à Venezuela, país a quem impôs sanções e roubou o ouro, para que tudo volte a funcionar como dantes. E, como diz o volátil primeiro-ministro de Portugal, os preços dos combustíveis voltarão à normalidade quando acabar a guerra na Ucrânia. Uma grosseira falsificação da realidade sentenciada com a maior desfaçatez.

Os dirigentes europeus são, no mínimo, irresponsáveis ou ignorantes e mentirosos, ou tudo ao mesmo tempo, porque as coisas não funcionam assim.

Vale a pena reflectir um pouco sobre o que está em jogo para lá da simplicidade de cortar o petróleo russo e substituí-lo por outro. E tudo apenas em seis meses.

É muito duvidoso que a União Europeia consiga encontrar as quantidades de petróleo necessárias no mercado internacional e num período tão apertado de tempo. Por outro lado, a economia europeia funciona há décadas com base no petróleo russo barato e abundante, com características físicas e químicas há muito conhecidas e imutáveis, fluindo regularmente nas quantidades necessárias e sem interrupções. As refinarias, o aparelho industrial, a petroquímica, os transportes, os sistemas de aquecimento e a produção de derivados – gasolina, gasóleo, combustíveis para motores de avião, benzeno e outros – dos países da União Europeia estão há décadas afinados para trabalhar com as características do petróleo russo importado.

Tipos de petróleo oriundos de várias outras fontes e regiões, as misturas que venham a ser feitas entre eles, a inconstância e a variabilidade dessas próprias misturas e o desconhecimento que ainda existe quanto às suas características – isto no pressuposto de que seja encontrada no mercado a quantidade suficiente para abastecimento regular e constante – implicam uma reconversão dos aparelhos petrolífero e industrial europeus, a que devem adicionar-se as adaptações de transporte, de portos, do armazenamento e de toda a logística exigida para a transformação. E quando se fala de preços, esqueçamos o petróleo russo barato: as sanções impostas pelo Ocidente já colocaram o petróleo bruto bem acima dos 100 dólares por barril e elevaram os preços da energia nos Estados Unidos e na Europa para os níveis mais altos em 40 anos. Trata-se, relembra-se, apenas de um ponto de partida para preços que poderão ser estratosféricos em relação aos valores habituais, principalmente quando o petróleo russo for abolido, consequência a somar às decorrentes da perturbação dos mercados de gás natural devido, mais uma vez, à obsessão sancionadora dos dirigentes norte-americanos e europeus. Tendo em consideração o elevado número de variantes desconhecidas para tentar substituir o petróleo russo é impossível calcular até onde chegará a espiral dos preços da energia.

Dizem os especialistas que a mudança radical do tipo de petróleo consumido na União Europeia implica gastos de milhões de milhões de euros e trabalhos para muitos anos, não para seis meses; e que as transições prometidas para as energias renováveis não passam ainda de piadas postas a circular pelos novos/velhos oligarcas convertidos à «economia verde» como novo ramo da selvajaria neoliberal. E não esqueçamos também que os veículos eléctricos são carregados com energia gerada essencialmente por combustíveis fósseis, em busca dos quais continua acesa a corrida em todo o mundo – e certamente por muitos anos. As promessas de substituição dos produtos petrolíferos são, por ora, historinhas para ninar ingénuos.

Por este andar, devido a impossibilidade de substituir automaticamente o petróleo russo, dentro de meses o Ocidente mergulhará ainda mais na crise económica, na instabilidade dos fluxos energéticos; e a inflação, que alguns dizem agora ser passageira, implicará situações dolorosas na sociedade, sobretudo nos extratos mais desfavorecidos. Não por causa da «guerra de Putin» mas das sanções irracionais contra a Rússia impostas pelos dirigentes europeus e que se viram contra os povos europeus. Na guerra económica, onde «as coisas estão a correr mesmo muito mal», na opinião do editor de Economia do The Guardian, Larry Elliott, os dirigentes europeus não se limitam a dar tiros no pé. Outros saem-lhes pela culatra. E comprar petróleo à Líbia no mercado negro gerido por milícias terroristas ou adquirir à Índia petróleo que este país comprou à Rússia, mas agora com os preços multiplicados a uma potência bem elevada, são hipóteses bem à medida das brilhantes e desnorteadas cabeças dos nossos dirigentes.

Quanto à Rússia, segundo reconhecem publicações europeias como The Economist e o The Guardian, e até o New York Times nos Estados Unidos, nunca ganhou tanto dinheiro com a venda de petróleo, apesar de comercializar menos e de fazer descontos nos negócios com a China e a Índia.

Sanções à Rússia? Vejamos as conclusões de The Economist: «A venda de petróleo e gás para a maior parte do mundo continua ininterruptamente. O superavit comercial deve bater recordes nos próximos meses; em 2022 o superavit em conta corrente, que inclui comércio e alguns fluxos financeiros, pode chegar a 250 mil milhões de dólares (15% do PIB de 2021), mais do dobro dos 120 mil milhões» do ano passado.

Agora a palavra à CBS norte-americana: apesar do roubo das reservas cambiais russas no estrangeiro, «o rublo é a moeda com melhor desempenho do ano – ganhou mais de 40% ao dólar desde Janeiro», principalmente a partir do momento em que foi indexado ao ouro e não à divisa norte-americana. Além disso, ainda segundo a mesma fonte norte-americana, «o comércio de recursos naturais (russo) está em alta, embora haja quebra no volume de exportações – mas o aumento dos preços mais que compensa as quedas».

Quando ao gás natural, diz o francês Les Echos citando o Citibank, que a Rússia pode ganhar mais 100 mil milhões de dólares do que no ano passado, por causa das subidas de preços decorrentes das sanções, apesar das quais «os 27 da União Europeia continuam a enviar 200 milhões de dólares por dia para a Gazprom».

Simon Jenkins, colunista do The Guardian, chegou à seguinte conclusão: «enriquecendo em vez de empobrecer, Moscovo está a deixar os europeus com falta de gás e os africanos sem comida».

A asserção é parcialmente verdadeira. Mas arrasta com ela um outro mito, o da responsabilidade da Rússia pela «fome no mundo», que a realidade livre da propaganda desmente com toda a facilidade.

Obstrução aos cereais, uma história falsa

A narrativa sobre o agravamento da fome no mundo por causa da guerra na Ucrânia, sobretudo em consequência da actuação russa, é uma das mais descabeladas linhas de propaganda em circulação.

Então a fome no mundo não é uma situação sistémica resultante das práticas coloniais e imperiais, das guerras e destruições conduzidas maioritariamente pela NATO e seus membros, dos atentados ambientais, da utilização predatória de grandes áreas de terrenos agrícolas em países em desenvolvimento pelas transnacionais da agroindústria, da inutilização de terras aráveis pela corrida entre as grandes potências na caça aos recursos minerais, da desertificação decorrente das más práticas contra os ecossistemas?

Nada disso. A fome agrava-se porque, garante a opinião única, a Rússia impede a comercialização dos cereais ucranianos. É um dogma.

Façamos então contas e arrolemos alguns factos reais.

O mundo produz anualmente 800 milhões de toneladas de trigo e diz-se que a Ucrânia, considerada apenas o oitavo maior produtor, está pronta para exportar 20 milhões de toneladas, ou seja, 2,5%.

O trigo representa 20% dos produtos alimentares comercializados, segundo a FAO, pelo que a quota real ucraniana é de 0,5%, isto é, pouco mais do que nada. Entretanto, segundo órgãos oficiais dos Estados Unidos, os 20 milhões de trigo ucraniano representam somente exportações potenciais: na realidade, a quantidade comercializável para o estrangeiro não ultrapassa os seis a sete milhões de toneladas. Irrelevante, portanto: a falta do trigo ucraniano tem uma contribuição nula para o aumento da fome.

Acresce que o governo de Kiev tem elevadas responsabilidades nas dificuldades para a exportação do trigo produzido no país. As suas tropas minaram os portos que controlam no Mar Negro, principalmente o de Odessa e os mais próximos, e afundaram embarcações para barrar o acesso de navios às instalações. A Rússia e a Turquia dispuseram-se a desminar as águas e Moscovo comprometeu-se a criar e respeitar corredores humanitários para exportação de cereais. O presidente Zelensky e a sua corte nazi nem querem ouvir falar do assunto. Entretanto a Rússia desminou os portos de Mariupol e Berdiansk, que conquistou aos terroristas do Azov, e disponibilizou-os para a navegação internacional, incluindo embarcações ucranianas, através de corredores humanitários. Kiev continua a rejeitar.

O governo ucraniano pode também exportar trigo – e consta que está a fazê-lo – através do Danúbio e da Roménia; através da Hungria; igualmente através da Polónia, desde que se façam acertos nas bitolas ferroviárias. E também poderia fazê-lo pelo território da Bielorrússia com acesso aos portos do Báltico. Mas essa via está barrada pelas sanções impostas contra Minsk.

Seja como for, a questão do «congelamento» do trigo ucraniano é um falso problema e sem qualquer interferência na situação alimentar mundial. É fruto de uma propaganda doentia.

Já a questão do trigo, dos fertilizantes e dos compostos para fertilizantes russos tem realmente impacto na alimentação europeia e mundial; porém, o governo russo não tem qualquer responsabilidade na situação. Os produtos apenas não são comercializados devido às sanções impostas pelo Ocidente a Moscovo, nada mais do que isso. A Rússia, o maior exportador mundial, teria capacidade para comercializar 37 milhões de toneladas de trigo este ano e 50 milhões em 1922/23. Contudo, é natural que nem todo esse volume fique retido em território russo porque a maior parte do mundo não aderiu às sanções e está disponível para encontrar maneiras de as contornar – tanto mais que não têm qualquer legalidade e não foram assumidas através da ONU. Trata-se apenas de «regras» arbitrárias impostas pelo Ocidente colonial. Subvertê-las é um acto de inteligência, resistência – e de sobrevivência.

Mas as sanções impostas à Rússia perturbam, de facto, o panorama alimentar mundial e em África sente-se já, por exemplo, a falta de fertilizantes e de potássio para fertilizantes. É natural que assim seja: Moscovo representa um quarto do comércio mundial de fertilizantes; e a Rússia e a Bielorrússia, igualmente submetida a sanções, são responsáveis por 45% dos fertilizantes potássicos. Mais uma vez, sejamos claros e objectivos: as dificuldades agravadas sentidas na situação alimentar mundial não decorrem da «guerra na Ucrânia» mas das sanções impostas à Rússia pelo Ocidente geopolítico – menos de 15% da população mundial.

É natural, portanto, que cresça no mundo o interesse de cada vez mais países numa nova ordem mundial multipolar ancorada na afirmação crescente de potências com a Rússia e a China. As medidas práticas de contestação da ditadura do dólar e de instituições imperiais como o FMI e o Banco Mundial surgem e reforçam-se através de novas formas de cooperação regionais e transnacionais; e as transacções comerciais e os movimentos financeiros com base em commodities, matérias-primas e outros recursos naturais começaram a substituir o dólar. É a tentativa de restaurar uma economia internacional com base em recursos tangíveis e não em papel verde impresso às toneladas e à medida das necessidades especulativas de uma sociedade financeirizada em que os oligarcas jogam em casinos globalistas de onde a economia virtual expulsou praticamente a economia real assente em riqueza palpável.

Na recente cimeira do Fórum Económico Mundial, o cenáculo do neoliberalismo, não foi apenas Kissinger quem deitou água gelada na euforia arrogante do globalismo ortodoxo e do «Great Reset», o «grande reinício» para impor um neoliberalismo «renovado» em bases «ecológicas». James Diman, representante do gigante bancário JP Morgan, vaticinou que «um furacão económico está a chegar».

O neoliberalismo, como instrumento do imperialismo e do colonialismo globalista, parece ter começado a abanar à medida que a ordem mundial unipolar vai perdendo terreno. São sinais significativos de que o Ocidente geopolítico entrou em decomposição.



sábado, 11 de junho de 2022

O CONFLITO NATO-UE / OPINIÃO



Por Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 10/06/2022


Voltando aos primórdios da união de facto, ou do casamento forçado entre a NATO e a UE.
As causas longínquas do que, com a guerra da Ucrânia, se veio a revelar um inultrapassável conflito, com um vencedor e um vencido, os EUA vitoriosos e a União Europeia destroçada (apesar de se agitar), encontram-se na entrada dos EUA na II Guerra Mundial

Os Estados Unidos entraram na II GM e intervieram na Europa não por motivos ideológicos (defesa da democracia, ou dos direitos do homem, ou de uma civilização), mas por motivos de interesse estratégico, de substituição da Europa (a Inglaterra) como centro do mundo. Esse estatuto de potência imperial implicava, à semelhança da Inglaterra imperial e colonial (sua antecessora), dispor de supremacia marítima e aérea, de dominar o sistema de trocas comerciais e o financeiro, de, em suma, substituir a Royal Navy pela US Navy (mais a USAF), substituir a libra pelo dólar, a City por Wall Street. A língua inglesa manter-se-ia o latim do novo império.

As causas da II GM são eminentemente económicas e sociais, uma questão de poder. A revolução russa criara esperanças de tomada de poder pelo proletariado industrial e essa esperança teve como réplica a reação violenta dos detentores do poder na Europa (o nazismo e o fascismo e governos autoritários em Inglaterra e em França).

Os banqueiros e industriais alemães pensaram exatamente o mesmo que os banqueiros e industriais ingleses e americanos. Era necessário derrotar, se possível no ovo, os revolucionários socialistas e comunistas. Daí as boas, as excelentes relações entre a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos. Daí a complacência com que os “democratas” ingleses e americanos viram a ascensão do nazismo e do fascismo, daí a recusa das democracias europeias apoiarem os republicanos espanhóis. Daí, por fim, a relutância dos EUA em entrar na guerra, esperando que os europeus se digladiassem e mutuamente se enfraquecessem.

Daí, ainda, imediatamente antes da guerra, as frustes tentativas de conjugação de esforços com a URSS, que acabaria por ser deixada isolada contra os alemães. As divergências no movimento internacional socialista e comunista europeu também facilitaram muito a tarefa de manter o essencial das relações sociais dos regimes saídos da revolução industrial.

A questão do nazismo nunca foi uma preocupação para as classes dirigentes inglesas e americanas. O governo inglês, os seus parlamentares, os “comuns” e os “lordes”, mantiveram uma política de boa relação, para não dizer de cumplicidade com a Alemanha nazi. Não é necessário recordar as simpatias de Eduardo VII, o duque de Windsor, pela Alemanha de Hitler, ordeira e anticomunista.

Apenas quando a Alemanha ocupou a França e ameaçou fazer dela uma base de ataque às ilhas Britânicas soaram os alarmes e Churchill surgiu a dirigir a resistência. Mas os americanos continuaram de fora — a guerra era entre europeus. Roosevelt, em 1940, afirmava na campanha eleitoral que ia manter os EUA fora da guerra. Em 1941 Churchill pedia armas aos americanos — ferramentas — mas foi muito longo e difícil o processo de autorização do Congresso — e o secretário de Estado da Guerra, Henry L. Stimson, teve de lembrar que os EUA haviam permanecido seis anos sem se incomodarem com o facto de a Alemanha se estar a rearmar. (Kimball, Warren. Forged in War: Roosevelt, Churchill and the Second World War. New York: William Morrow & Co., 1997)

Apenas em Agosto de 1941 Roosevelt e Churchill se encontram e a entrada dos americanos na guerra obedeceu à análise que estes fizeram quanto aos seus interesses no presente e no futuro. Nada de idealismos, nem de defesa de princípios.

A entrada dos EUA na guerra no teatro da Europa, com os elevadíssimos custos de sangue e recursos (estamos agora a relembrar o desembarque da Normandia), foi já feita como uma ação da “grande América”, de que, é certo, os europeus retiraram o proveito de um modelo liberal de sociedade (a parte ocidental, herdeira do liberalismo inglês) e o de um sistema de segurança social à custa da livre concorrência dos mercados (a parte oriental, agrícola e herdeira de regimes medievais absolutistas).

A NATO surgiu para impor a soberania dos EUA a metade da Europa e para não permitir o ressurgimento de uma Europa autónoma. E claro, para impedir uma União Europeia! Não só para impedir uma Europa unificada como principalmente a aliança da Europa Ocidental com a URSS.

Este objetivo de separação das Europas é e foi visível nas manobras para impedir que partidos comunistas europeus se aproximassem do poder, caso de Itália e França. Foi visível na campanha que logo após a II Guerra Churchill conduziu contra a URSS, de demonização dos seus dirigentes e desvalorização do seu papel na derrota da Alemanha nazi. A URSS representou neste jogo o papel do homem do saco com que nas histórias infantis se leva as crianças a obedecer às ordens paternas. Os europeus foram tratados como infantes sem discernimento e muitos continuam a acreditar nas fábulas.
A alternativa ao comunismo — à mudança da essência do poder — foi oferecer aos europeus da órbita americana um estado de bem-estar através das sociais-democracias e das democracias cristãs.

O welfare state, que está a ser desmantelado diante dos nossos olhos nesta guerra da Ucrânia, para proveito dos sistemas privados e neoliberais de saúde e pensões, segundo o modelo americano, foi a moeda de troca da aceitação do estatuto colonial. Dir-se-á que foi um colonialismo confortável.

Foi, de facto, mas a leveza e o bom trato dos serviçais não altera a essência do estatuto de servidão e este será exercido com todo o rigor sempre que os servos se julguem libertos! Os americanos vão deixar de pagar os subsídios de férias, de desemprego e os serviços nacionais de saúde e de pensões dos europeus. Será uma das consequências desta guerra.

A paz do pós- Segunda Guerra na Europa não foi uma benesse da NATO, nem, logo, dos americanos. Não foi grátis, muito pelo contrário. A paz na Europa foi conseguida à custa do fim dos impérios coloniais europeus na Ásia e em África — à custa das guerras na Coreia, na China, Indochina, na Palestina, no Médio Oriente, no Congo, no Tanganica, e mais recentemente na Guiné, em Angola e em Moçambique, e, ainda mais perto, na Jugoslávia, no Iraque e na Síria.

A NATO serviu para retirar os europeus do Mundo e deixá-lo para as duas superpotências. Na Europa, a NATO, tal como o Pacto de Varsóvia, serviram como forças de imposição da ordem política e social interna, sufocando movimentos políticos e sociais alternativos: a agitação radical da Alemanha e da Itália, o Maio de 68 em França, as revoltas de Praga e de Budapeste, por exemplo.

Pergunta-se muitas vezes se o mundo sem a NATO seria melhor? Seria diferente. Teria uma distribuição de riqueza diferente, de certeza, uma justiça social diferente… um estatuto diferente de dignidade dos povos. Teria um sistema de alianças mais flexível, com mais direitos para os povos de regiões do mundo que não controlam os seus territórios e matérias-primas, que são forçados a trocas desiguais.

Por fim, fala-se atualmente em aumentar despesas militares para fazer frente, de novo, à ameaça russa. A questão não é, como alguns movimentos antimilitaristas a têm colocado, de optar entre os canhões ou a manteiga. A questão é a de ter aparelhos militares adequados às ameaças e aos objetivos e ter liberdade para os utilizar.

Liberdade de ação é um dos princípios da guerra, quem a não tem, é vencido. A Europa da União Europeia não tem e escusa de gastar recursos a fingir de conta que conta.

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