março 2019
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sábado, 30 de março de 2019

BREXIT: THERESA MAY NUM IMBRÓGLIO DUMA SAÍDA SEM SAÍDA

A rejeição do acordo de saída por parte dos parlamentares em Westminster põe o RU em incumprimento legal, o que implica que o Reino Unido terá de deixar a UE a 12 de Abril, situação diferente se o acordo que May negociou com os restantes 27 estados membros tivesse sido aprovado, podendo nesta situação o Brexit ser concretizado até 22 de Maio.

Por Paulo Ramires

Theresa May viu o seu acordo de saída do Reino Unido da UE, negociado durante 18 meses, ser derrotado no parlamento de Westminster por 344 votos contra e 286 votos a favor, conseguindo uma margem de 58 votos, uma margem mais estreita que as anteriores votações, significando isto que a primeira-ministra britânica irá agora pedir a extensão do prazo de saída da UE [Artigo 50.º] de forma a evitar uma saída sem acordo (Hard Brexit). Uma saída sem acordo implicará colocar o Reino Unido fora da união aduaneira com a UE, o que seria um autêntico desastre para as empresas que comercializam a partir do RU, isto porque as relações de comercio do Reino Unido com a UE passariam a ser feitas ao abrigo das regras gerais da Organização Mundial do Comércio, como qualquer outro país do mundo. Mas as consequências serão certamente piores, significando o próprio desmantelamento do Reino Unido com a Irlanda do Norte a sair do Reino Unido, dado que a fronteira desta região é particularmente sensível, tendo as divergências entre unionistas e irlandeses acalmado quando o controlo alfandegário deixou de existir, a Escócia maioritariamente pró-europeia não tardaria a realizar um segundo referendo para sair do Reino Unido e se juntar à UE, e neste cenário se o Brexit vier a acontecer a hipótese da Escócia sair do RU é bem elevada. 

A rejeição do acordo de saída por parte dos parlamentares em Westminster põe o Reino Unido em incumprimento legal, o que implica que o Reino Unido terá de deixar a UE a 12 de Abril, situação diferente se o acordo que May negociou com os restantes 27 estados membros tivesse sido aprovado, podendo nesta situação o Brexit ser concretizado até 22 de Maio. Depois de conhecida a rejeição do acordo na passada Sexta-feira, Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu marcou uma cimeira de emergência do Conselho Europeu para 10 de Abril, esperando que o Reino Unido peça uma extensão maior do prazo de saída, o que significa que o Reino Unido passaria a participar nas eleições para o parlamento europeu a 23-26 de Maio, apesar deste cenário ser no mínimo surrealista é o cenário bem mais provável. 

Mas até ao cenário das eleições para o parlamento europeu e eventualmente eleições gerais no Reino Unido, Theresa May terá de tentar convencer mais deputados para votar um novo acordo e para as próximas votações que se seguem já a 1 de Abril sobre moções indicativas. Neste puzzle de tentar juntar deputados, Theresa May vai ter de tentar aproximar das suas posições os 10 parlamentares do Democratic Unionist Party (DUP) da Irlanda do Norte que apoiam o seu governo mas que receiam o Irish BackStop que pode ariscar a que a Irlanda do Norte se separe do Reino Unido. Nigel Dodds líder do DUP em Westminster afirma mesmo que prefere ficar na UE do que por em perigo a ligação da Irlanda do Norte com o Reino Unido. Mas não haverá Brexit sem BackStop, isto é, um mecanismo legal que garanta que a Irlanda do Norte e a República da Irlanda não fiquem com uma fronteira rígida, ou seja a garantia de que a Irlanda do Norte permanecerá no mesmo espaço aduaneiro que a UE e no mercado comum, ora isto é inaceitável para os unionistas do DUP que vêem este mecanismo legal como um perigo real para as relações com o resto do Reino Unido, ora daqui surge um grande imbróglio político difícil de ser resolvido, assim aparece outro mecanismo o BackStop para o BackStop, uma espécie de garantia para a Irlanda do Norte no caso do primeiro mecanismo falhar. 

Embora Theresa May tenha conseguido o apoio dos votos conservadores, 277, a maior parte dos outros partidos e em particular os trabalhistas, com a excepção de 5 deputados, votaram contra, com Jeremy Corbyn a tentar desgastar a posição da primeira-ministra britânica e a tentar a sua demissão de forma a que se possa realizar eleições gerais, mas Corbyn, não é particularmente um entusiasta da União Europeia, mesmo que admita um novo referendo a sua posição sobre a questão não inclui a opção de integração do Reino Unido na União Europeia, apesar desta posição do líder trabalhista, muitos deputados trabalhistas são particularmente a favor do Remain e esperam uma oportunidade para que haja um novo referendo já que todas as sondagens indicam que os britânicos são agora favoráveis à permanência do Reino Unido na UE, May poderia tentar convencer estes deputados, mas se o fizer perderá o apoio da linha dura do seu partido, os Brexiteers conservadores cada vez mais ansiosos por sair do bloco mesmo a qualquer custo. E se perdesse o apoio desta linha dura, maioritária no seu partido, ariscar-se-ia a perder também a posição de primeira-ministra do Reino Unido. 

Uma coisa é certa, é um enorme imbróglio duma saída sem saída.


quinta-feira, 28 de março de 2019

BREXIT: THERESA MAY OFERECE-SE PARA SE DEMITIR, MAS HÁ UM PROBLEMA

Theresa May anunciou ao seu partido que não permanecerá como primeira-ministro do Reino Unido na próxima etapa do processo Brexit se o seu acordo de saída proposto for aprovado pelo parlamento. Aqui está o que poderemos saber até agora e no futuro sobre este processo.


Tom Quinn* | theconversation.com

Por que a primeira-ministro se sentiu que precisava anunciar que se retiraria?

A primeira-ministro ofereceu esse compromisso como último recurso, na esperança de que isso a ajudasse a aprovar o seu acordo do Brexit pelo parlamento. Depois das derrotas esmagadoras sobre o seu acordo em duas "votações significativas", May foi persuadida de que a única oportunidade de garantir a vitória em qualquer terceira votação seria prometer demitir-se pouco depois.

A maior parte dos deputados conservadores que bloqueiam o seu acordo são os Brexiteers - embora também existam alguns Remainers que querem parar completamente o Brexit. May procurou conquistar os Brexiteers, assim como os 10 deputados do Partido Democrático Unionista (DUP), que mantém o governo em funções.

O DUP e os Tory Brexiteers opõem-se ao mecanismo de “recuo” do acordo de saída para evitar uma fronteira difícil na ilha da Irlanda depois do Brexit. Embora pouco tenha sido feito nessa questão, ficou claro que alguns Brexiteers estavam mais dispostos a considerar apoiar o acordo de retirada do que outros. O preço que eles exigiram foi a renúncia de May depois do acordo ser aprovado. A primeiro-ministro relutantemente chegou a reconhecer que esse curso de acção oferece a única perspectiva de conseguir que o seu acordo passe no parlamento.

Por que os apoiantes do Brexit querem que ela se vá embora?

Os Brexiteers acreditam que May negociou um acordo de saída que é muito mais suave do que poderia ter sido. Alguns decidiram que podem ter que engolir o acordo para evitar perder completamente o Brexit, mas não querem que May lidere a segunda ronda de negociações com a UE. Estas envolverão negociações comerciais e os Brexiteers esperam poder instalar um novo líder que adoptaria uma linha mais rígida com a UE.

No entanto, permanecem muitos Brexiteers conservadores que continuarão a opor-se ao acordo, mesmo após a promessa de May. Cerca de 20 ou 30 ainda podem votar contra.

Esta promessa torna mais provável que ela consiga que o seu acordo passe no parlamento?

A oferta pós-datada de May para renunciar aumentará as oportunidades do governo ganhar uma terceira votação do acordo, mas como as coisas estão, mais uma derrota - embora por uma margem menor - continua a ser o resultado mais provável. Conquistar os Brexiteers é apenas um problema para May. Talvez 20 conservadores pró-Remain ​​continuem a se opor ao acordo. O que encorajou muitos Brexiteers a aproximarem-se de May nos últimos dias - o medo de perder o Brexit completamente - é um incentivo para os Remainers continuarem a opor-se ao governo.

E se ela não conseguir o acordo no parlamento, mesmo assim?

Se o governo perder a próxima votação, muito pode depender da dimensão da derrota. Se for razoavelmente pequena - talvez abaixo de 50 - May poderia ser encorajada a tentar uma quarta votação. Mas se a derrota tiver novamente mais de 100 votos (a primeira votação foi perdida por 230 votos e a segunda por 149), então todas as oportunidades serão perdidas. A oferta de May de renunciar foi expressa condicionalmente se o seu acordo passar, e se isso não acontecer, ela poderá se recusar a demitir-se. No entanto, no meio do subsequente caos de uma derrota pesada, o assunto poderia facilmente ser retirado das mãos de May pelo seu gabinete.

O que sabemos até agora sobre quando a primeira-ministro se irá afastar?

Se o acordo de May passar numa terceira votação, a Grã-Bretanha deixará a UE a 22 de Maio. Presumivelmente, May anunciaria a sua renúncia logo depois disso. Se isso não acontecer, e o governo e o parlamento não conseguirem apresentar um novo plano, a Grã-Bretanha sairá a 12 de Abril sem um acordo. Isso provavelmente também levaria ao fim do mandato de May como primeira-ministro. Se uma extensão longa for solicitada, a data de saída de May é menos certa.

Quem poderia potencialmente substituí-la?

Na corrida para a liderança da escolha do sucessor de May, os deputados irão reduzir os candidatos   a uma lista de dois, que será então submetida perante os 100.000 membros individuais do partido, a maioria eurocéptica. O novo líder provavelmente será um Brexiteer ou um antigo Remainer que tenha se aproximado dos Brexiteers.

Boris Johnson há muito tempo que procura tornar-se primeiro-ministro e ele provavelmente concorreria para suceder a May, tendo retirado-se da corrida à liderança anterior em 2016. O companheiro Brexiteer, Dominic Raab , que, como Johnson, deixou o gabinete por divergências com May sobre o Brexit, é outro candidato importante. Andrea Leadsom, que concorreu em 2016, aumentou a sua reputação desde então e pode voltar a concorrer, tendo agora adquirido mais experiência em frontbench [membro do gabinete sombra com lugar na Casa dos comuns].

Dois antigos Remainers que se aproximaram dos Brexiteers são o Ministro dos Negócios Extrangeiros [Secretary of State for Foreign and Commonwealth Affairs], Jeremy Hunt, e o Ministro do Interior [home secretary], Sajid Javid, ambos muito cotados para concorrer. A questão a saber seria se as bases confiariam num outro Remainer após a experiência com May. Finalmente, Michael Gove é um Leaver que se aproximou um pouco da posição oposta, ajudando a vender o acordo de saída. Haveria dúvidas, no entanto, sobre se os Brexiteers ou Remainers confiariam plenamente nele.

Deveríamos esperar um primeiro-ministro Brexiteer nesse caso?

Tanto Johnson quanto Raab sentiriam-se optimistas em ganhar o apoio das bases na segunda etapa da candidatura à liderança, mas precisariam de apoio suficiente dos parlamentares conservadores[Tory] para chegar às duas últimos fases, e isso poderia ser mais problemático. Johnson em particular é uma figura muito divisiva no grupo parlamentar.

Se o Partido Conservador sente colectivamente que é necessário reunir as várias facções, isso seria contra os "mais fortes" Brexiteers em geral e Johnson em particular. Por outro lado, é provável que excluam os Remainers, como o secretário do trabalho e pensões, Amber Rudd. Com poucas excepções, mais notavelmente Margaret Thatcher, em 1975, os conservadores tendem a escolher líderes que consideram como unificadores - mesmo que nem sempre isso acabe por acontecer uma vez em funções.

Isso significa que haverá  eleições gerais?

A possibilidade de eleições gerais é muito real. Se a terceira votação for uma derrotada[para May], eleições poderão oferecer uma maneira de ganhar uma nova maioria para implementar o acordo de May. Mas haveria sérias dúvidas sobre se os Tories iriam querer que May os levasse a uma outra eleição depois de ela ter perdido a maioria em 2017. Alguns Tory Remainers poderiam votar contra o governo com um voto de confiança para evitar um Brexit sem compromisso.

Alternativamente, os Brexiteers conservadores poderiam fazer o mesmo se o governo quisesse atrasar o Brexit. Se May perdesse o voto de confiança no parlamento, haveria uma janela de duas semanas durante a qual os parlamentares teriam a oportunidade de formar um novo governo. Esse poderia ser um outro governo conservador sob um primeiro-ministro diferente ou um governo envolvendo outros partidos. A formação de um novo governo não teria necessariamente de implicar eleições. Se nenhum novo governo pudesse ser formado, haveria então eleições.


*Professor assistente do Departamento de Governo da Universidade de Essex.

Tradução: Paulo Ramires


quarta-feira, 27 de março de 2019

O CONFRONTO SOCIAL ENDURECE EM FRANÇA

Uma sondagem da Ifop-Atlantico de 20 de Março de 2019 mostra que, enquanto 50% dos franceses esperam reformas, 39% consideram uma revolução necessária; um número duas vezes maior do que nos outros países ocidentais pesquisados. Este apetite revolucionário explica-se tanto pela tradição histórica francesa como pelo bloqueio muito particular de instituições que tornam impossível qualquer solução reformista (as reformas actuais estão sempre ao serviço daqueles que controlam as instituições e não do interesse geral). Desde 2009 (ou seja, após o colapso financeiro de 2008), os Estados Unidos alcançaram um crescimento de + 34%, a Índia de + 96%, a China de + 139%, enquanto União Europeia diminuiu -2%.

Por Thierry Meyssan* | 27-03-2019

Para responder ao movimento dos Coletes Amarelos, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou medidas sociais e organizou um debate nacional de três meses.

No final, parece que não só apenas as posições não mudaram, como endureceram.

As medidas sociais efectivamente implementadas têm sido o de aumentar o poder de compra dos trabalhadores mais mal pagos através da reavaliação das licenças e não pela remuneração justa do seu trabalho.

O Grande Debate permitiu que dois milhões de franceses se expressassem, mas foi amplamente ignorado pelos coletes amarelos. Inúmeros tópicos foram discutidos (menor poder aquisitivo das classes baixa e média, ineficiência do estado nas províncias, a política energética), mas absolutamente não a causa da crise. Lembre-se que esta crise está longe de ser apenas uma preocupação dos franceses, afectando todos os países ocidentais desde o colapso da União Soviética e foi particularmente agravada pelo colapso financeiro de 2008 [ 1 ].

Os franceses estavam particularmente conscientes do desmantelamento da classe média, forçados a deixar as cidades e relegados à "periferia urbana". Eles ainda não assimilaram o rápido desaparecimento das classes médias no Ocidente e a sua súbita aparição na Ásia. Portanto, eles ainda não entenderam que os males que os atingem são consequência do sucesso dos actores capitalistas livres de regras políticas. Eles persistem em responsabilizar os super ricos e não os líderes políticos que aboliram as suas restrições.

A deslocalização de empresas ocidentais usando o know-how básico é benéfica para todos, à medida que novas empresas são criadas usando um know-how mais sofisticado. A Ásia não roubou a riqueza do Ocidente, mas beneficiou-se do investimento ocidental. A anomalia é que os políticos ocidentais desistiram de regulamentar esse processo desde o fim da URSS, permitindo não só transferências de tecnologia devido a diferenças no padrão de vida entre os países, mas também para fugir às responsabilidades sociais.

Os coletes amarelos evitaram cuidadosamente a escolha de líderes, deixando a classe dominante sem qualquer interlocutor.

Estes, que inicialmente eram conciliatórios com os manifestantes, endureceram repentinamente quando entenderam que não seria possível resolver a crise sem atingir directamente o seu próprio modo de vida. Aqueles que então ficaram do lado da oligarquia contra o povo lançaram uma repressão policial que causou muitos feridos e inválidos. Assim, eles, deixaram o campo livre para os anarquistas, para que eles perturbassem a ordem pública durante as manifestações e desacreditassem o protesto.

No final destes três meses, a sociedade francesa está mais consciente do problema e mais profundamente fracturada. Duas leituras do período são possíveis:

Ou você considerar que os acontecimentos actuais (aumentando das desigualdades, enfraquecimento das instituições nacionais e a transição dum estado repressivo, em contraposição a um que represente o povo unido) como aqueles que levaram à Segunda Guerra Mundial. 

Ou se considera que esses acontecimentos se assemelham aos que despertou o movimento das comunas livres (o mais famoso é a Comuna de Paris). 

Essas duas interpretações não são contraditórias, na medida em que a Segunda Guerra Mundial também foi uma maneira de responder à crise financeira de 1929 sem ter que se tirar as consequências económicas e sociais.

Uma sondagem da Ifop-Atlantico de 20 de Março de 2019 mostra que, enquanto 50% dos franceses esperam reformas, 39% consideram uma revolução necessária; um número duas vezes maior do que nos outros países ocidentais pesquisados. Este apetite revolucionário explica-se tanto pela tradição histórica francesa como pelo bloqueio muito particular de instituições que tornam impossível qualquer solução reformista (as reformas actuais estão sempre ao serviço daqueles que controlam as instituições e não do interesse geral).

A SITUAÇÃO DA FRANÇA NO MUNDO

Considerando que a classe dominante francesa está mais preocupada em preservar o seu modo de vida do que em resolver a crise, e que a causa dessa crise é transnacional, podemos antecipar que a sua evolução dependerá principalmente de factores externos.

Durante vários anos, um debate levou a classe dominante a um possível declínio em França. Não é possível decidir porque a noção de declínio se refere a valores relativos. No entanto, o que é certo é que o Ocidente em geral e a França em particular foram em grande parte superados por outros actores.

Desde 2009 (ou seja, após o colapso financeiro de 2008), os Estados Unidos alcançaram um crescimento de + 34%, a Índia de + 96%, a China de + 139%, enquanto União Europeia diminuiu -2%.

Durante o mesmo período, os Estados Unidos, que governaram o mundo unilateralmente após o desaparecimento da União Soviética, mantiveram o seu destacamento militar no exterior e a sua capacidade de produção de armas, mas perderam a sua superioridade tecnológica militar. No entanto eles especializaram-se em guerra assimétrica, isto é, na gestão de grupos armados não-estatais que eles armaram e financiaram. No mesmo período, a Rússia, cujo exército pós-soviético estava em farrapos, foi reorganizada e tornou-se, graças a sua investigação científica, a primeira potência tanto em termos de guerra convencional quanto em guerra nuclear.

Em termos de Direitos Humanos e Cidadãos, os Estados Unidos são o único país a praticar assassinatos em massa sem julgamento, enquanto a União Europeia (incluindo o Reino Unido à frente) são os únicos estados a realizar referendos e a desconsiderar as opiniões expressas pelos seus cidadãos. A taxa de encarceramento, que é de 385 prisioneiros por 100.000 habitantes na Rússia, é de 655 nos Estados Unidos, ou 70% a mais.

O mundo de hoje não tem conexão com o de há dez anos. Os Estados Unidos ainda estão na linha da frente no Ocidente, mas não estão mais na vanguarda do resto do mundo. São ultrapassados pela Rússia e China em termos económicos, militares e políticos. Ainda assim, continuamos a assistir a blockbusters de Hollywood, aprendemos inglês e desejamos passar as nossas férias em Nova York como se nada tivesse mudado.

Deste ponto de vista, é ilusório acreditar que uma melhor distribuição de riqueza no Ocidente resolverá o problema como ocorreu nos últimos quinhentos anos. Existe, é claro, um conflito de classes que precisa ser resolvido, mas é muito secundário em relação às mudanças internacionais. Todas as lutas sociais clássicas serão insuficientes porque o Ocidente perdeu a sua proeminência.

COMO DESBLOQUEAR A SITUAÇÃO?

A ultrapassagem ao Ocidente pela Rússia e China não é inevitável. Eles não está aqui para defender a estratégia delineada por Paul Wolfowitz à altura da queda da União Soviética para impedir que os concorrentes dos EUA crescessem mais rapidamente do que eles, mas para dizer que o mundo seria melhor se tudo pudesse se desenvolver livremente. Isso não quer dizer que qualquer desenvolvimento deve estar de acordo com o American Way of Life , porque os recursos do planeta não o permitem, mas incentivar cada civilização para seguir o seu caminho, respeitando o seu próprio ambiente.

Qualquer mudança estrutural só pode ser ordenada por um poder soberano. A única escala de governo que promove o interesse geral é a nação. Portanto, é uma prioridade restaurar a soberania nacional. Ao mesmo tempo, a democracia deve ser instituída dentro do quadro nacional, mas esta questão permanece secundária àquela do serviço do interesse geral.

Para a França, isso significa tanto a emancipação do poder político supranacional como um comando militar estrangeiro, isto é, a saída não necessariamente da União Europeia, mas dos princípios do Tratado de Maastricht, e não da Aliança Atlântica, mas do comando integrado da OTAN.

É somente tornando-se soberana que a França pode desempenhar um papel no conjunto das nações. Por enquanto, afirma defender o multilateralismo onde, na realidade, pratica uma política de bloco, alinhando-se sistematicamente com as posições alemãs.

A primeira decisão a ser tomada deve ser a de pôr fim à livre circulação de capitais. Não se trata de proibir movimentos monetários, questionar o comércio internacional e avançar para a auto-suficiência, mas recuperar o controle da riqueza nacional que deve permanecer no país que os possui produzido.

A segunda decisão deve ser reduzir o âmbito e a duração da propriedade intelectual, patentes e direitos de autor. Descobertas, invenções, criações, ideias em geral não pertencem ao direito de propriedade individual, mas pertencem a todos. Exclusividades e royalties são medidas provisórias que devem ser reguladas com respeito ao interesse geral único.

A terceira decisão será rever os acordos comerciais internacionais, um por um. Não será uma questão de introduzir regras proteccionistas com o risco de interromper o aperfeiçoamento da produção de bens e serviços, mas de equilibrar as trocas. Estes são dois objectivos completamente diferentes.

Os próprios Estados Unidos reivindicaram a sua soberania, renunciando parcialmente à sua supremacia imperial e retornando a uma posição hegemónica. Identicamente, eles reequilibram a sua balança comercial. Por outro lado, eles mantêm os abusos de propriedade intelectual que lhes proporcionam rendas confortáveis.

CONCLUSÃO

As reformas são sempre menos dolorosas que as revoluções. Seja como for, essas mudanças de longo prazo terão que ser feitas de uma maneira ou de outra. A recusa actual da classe dominante francesa não conseguirá impedi-las e só pode esperar prolongar seu conforto desafiando o sofrimento dos outros. Parará o mais tardar quando o sistema, do qual se beneficia no momento, começar a esmagar o seu modo de vida também.
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[ 1 ] " Como o Ocidente devora seus filhos ", por Thierry Meyssan, Rede Voltaire , 4 de dezembro de 2018.

voltairenet.org

Tradução: Paulo Ramires



terça-feira, 26 de março de 2019

RECONHECIMENTO DOS MONTES GOLÃ POR PARTE DE TRUMP IGNORA HISTÓRIA, LEI E ÉTICA



Por Noura Erakat* 
24 de Março de 2019 | Truthout.org

A 22 de Março de 2019, o presidente Donald Trump twittou sem a menor cerimonia que os Estados Unidos reconheceriam a soberania israelita sobre os montes sírios de Golã. Ele explicou que tal soberania “é de importância crítica estratégica e de segurança para o estado de Israel e para a estabilidade regional”. Tudo neste tweet é errado - seja enquanto lei, política e facto histórico.

Os Montes Golã, localizados no sudoeste da Síria, foram anexados por Israel durante a Guerra de 1967, durante os seis dias, Israel também passou a controlar a Península do Sinai, no Egipto, bem como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. As Nações Unidas, que estavam em sessão durante a guerra, deliberaram sobre o assunto por quase seis meses. A controvérsia girava em torno de saber se Israel deveria ser obrigado a retirar-se dos territórios árabes imediatamente ou se poderia, como o governo de Lyndon B. Johnson pediu, ser capaz de retê-los como consideração em troca de paz permanente. Apesar da oposição síria e palestiniana, em 1967, o Conselho de Segurança aprovou por unanimidade a Resolução 242., que estabeleceu a devolução de terras por paz desejada pelos Estados Unidos e Israel, que declarou que os territórios seriam devolvidos em troca de paz permanente.

A Resolução mostrou-se ineficaz devido à falta de vontade política para estabelecer a paz junto com o desejo de Israel de manter os territórios. O governo israelita desenvolveu o seguinte argumento legal: como não existia soberania na Cisjordânia e em Gaza - o Egipto e a Jordânia nunca tiveram títulos legítimos e os palestinianos não eram soberanos - nenhum país poderia reivindicar melhor título do que Israel. Assim, disseram as autoridades israelitas, a Cisjordânia e Gaza não poderiam ser ocupadas como uma questão de lei e são melhor descritas como "disputadas" em vez de territórios ocupados. Este novo argumento legal permitiu que Israel estabelecesse a presença legal como uma autoridade militar no território palestiniano, aderindo estritamente à Lei de Ocupação, mais notavelmente à sua proibição a fixações civis. Isso permitiu que Israel cumprisse as suas ambições territoriais de estabelecer colonatos, subtraindo as terras palestinianas sob o arcabouço da necessidade militar sem o consentimento do povo palestino.

Ao contrário dos territórios palestinianos, a Península do Sinai e os Montes Golã nunca foram disputados, já que ninguém questionou a soberania egípcia e síria, respectivamente. Ainda assim, mesmo ali, Israel recusou-se a reconhecer o território como ocupado por uma questão de direito. A estrutura estabelecida pela Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas revelou-se insustentável e, em Outubro de 1973, o Egipto e a Síria lançaram um ataque surpresa a Israel, na esperança de recuperar os seus territórios. Enquanto Israel finalmente prevaleceu na guerra, o Egipto e a Síria ganharam psicologicamente. A sua vitória obrigou a aprovação da Resolução 338 do Conselho de Segurança, que estabeleceu um cessar-fogo e catalisou um processo de paz no Médio Oriente liderado pelos EUA para devolver os territórios árabes em troca de paz. Os palestinianos não seriam reconhecidos como representantes legítimos para negociar o retorno da Cisjordânia e de Gaza até 1991 e a Síria continuava a se opor aos termos das negociações, que legitimavam as reivindicações defensivas de Israel na região e priorizavam a sua rejeição à soberania palestiniana.

Em 1979, Israel e o Egipto, o maior país árabe, concordaram com os Acordos de Camp David, que facilitaram o retorno do Sinai ao Egipto e normalizaram as relações egípcio-israelitas. Significativamente, os Acordos sinalizaram que nenhum exército árabe travaria uma guerra convencional contra Israel, já que o Egipto estabelecera uma paz permanente e a Síria não iria para a guerra sozinha. Dois anos depois, em 1981, Israel unilateralmente anexou os Montes Golã. A administração de Ronald Reagan repreendeu à anexação de Israel e declarou "nula e sem efeito". não menos importante, porque viola o princípio internacional que proíbe a aquisição de território pela força. Desde o início dos anos 90, Israel e Síria envolveram-se em várias negociações de paz sobre os Montes Golã mas cada uma delas desintegrou-se com a recusa de Israel de retornar às linhas de 1967. Fazer isso significaria abandonar o acesso de Israel a uma importante fonte de água no Mar da Galileia, que fornece ao país um terço do seu fornecimento de água potável.

O anúncio do presidente Trump no início desta semana desconsiderando a história, o importante direito internacional, bem como a política de longa data dos EUA.

A administração Trump, junto com Israel, afirmou que os Montes Golã servem a um interesse de segurança, mas isso é claramente falso. Israel estabeleceu 34 colonatos nos Montes Golã e estabeleceu cerca de 20.000 civis israelitas. Se de facto o território é um amortecedor defensivo contra o ataque sírio, então Israel está a usar a sua própria população civil como escudo humano. E se é seguro para os civis morarem lá, então não é um amortecedor defensivo. Mais, Israel mantém quase 167 empresas nos Montes Golã, incluindo o único resort de esqui disponível para os israelitas. Além disso, a Jordânia estabeleceu uma paz permanente com Israel em 1994 e, assim, juntamente com o Egipto, não representa uma ameaça militar; a Síria não travou nenhuma guerra desde 1973; e os dois outros países que historicamente ameaçaram Israel - Líbia e Iraque - foram dizimados em guerras lideradas ou apoiadas pelos EUA. O Hezbollah, que Israel alega ser uma força militar proxy do Irão, nem sequer iniciou a guerra do Líbano, onde está baseada, mesmo após a retirada das forças israelitas do sul do Líbano em 2000. A guerra em grande escala desde então foi iniciada por Israel após o Hezbollah ter realizado um ataque na fronteira para capturar três soldados israelitas que pretendia trocar por prisioneiros de guerra do Hezbollah. Não há ameaça militar credível a Israel na fronteira sul da Síria.

A principal razão para o anúncio dos EUA é doméstica: Trump está a falar para a sua base evangélica, que cobiça Israel como uma questão de profecia e ideologia. Os evangélicos americanos consideram a reunião de um judaísmo global em Israel como o elemento condicional para gerar o Armagedão e o retorno de Cristo. Ideologicamente, eles consideram Israel como a frente mais oriental na chamada guerra dos EUA contra o terrorismo, não apenas os ataques mas, talvez mais significativamente, a migração dos muçulmanos para o Ocidente.

O anúncio é uma benção para o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que está envolvido em acusações de fraude e corrupção apenas a três semanas antes das eleições israelitas. O anúncio de Trump serve como um desvio efectivo dos seus problemas internos e diz a uma base israelita de centro-direita que votar nele significa cumprir as ambições territoriais de Israel. A sociedade israelita considera os Montes Golã como parte de Israel. O anúncio de Trump no auge de uma tensa campanha sinaliza que um voto para Netanyahu é um voto para o homem forte Trump, que desdenha a lei internacional e a diplomacia em favor de uma política de "o poder faz a lei".

O efeito do anúncio de Trump depende da resposta internacional. Trump certamente tem autoridade executiva para reconhecer os Montes Golã como parte da soberania de Israel, mesmo em contravenção à lei internacional, mas o reconhecimento dos EUA não é o equivalente a uma mudança no status quo do território. Até agora tem havido uma ampla denúncia ao anúncio dos EUA, desde as Nações Unidas a vários estados, incluindo o Egipto e a Rússia. Embora essa condenação seja bem-vinda, também não é suficiente. É crucial que a comunidade internacional demonstre a sua oposição na forma de sanções mais coercivas, mas tal resposta é improvável se a aceitação tácita da embaixada dos EUA se mudar para Jerusalém for aceite. De facto, em Maio de 2017, o governo Trump transferiu a sua embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, em contravenção similar à Resolução 242 do Conselho de Segurança, desconsiderando o princípio que proíbe a aquisição de território pela força. Embora 128 países tenham condenado a iniciativa dos EUA numa resolução da ONU, e poucos outros países seguiram o exemplo e mudaram suas embaixadas, Israel não enfrentou consequências por se fixar em Jerusalém Oriental e pela limpeza étnica dos seus habitantes palestinianos. Na verdade, o secretário de estado Mike Pompeo visitou o Muro das Lamentações em Jerusalém Oriental na semana passada - o primeiro para uma autoridade dos EUA - reificando a mudança de política dos EUA numa tentativa similar de apoiar a campanha de reeleição de Netanyahu.

Esta situação abismal destaca a urgência de um movimento global de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel, que, pelo menos desde 2005, tem sido um esforço de base para superar a intransigência diplomática. Devemos lembrar que isso não é apenas sobre Israel, mas também sobre as guerras imperiais dos EUA no Médio Oriente, o seu ataque ao internacionalismo (isto é, ameaças contra o Tribunal Penal Internacional e a retirada do Protocolo Climático de Paris), bem como as suas actuais acções estruturais, violência contra minorias, nações indígenas, refugiados e mulheres nos Estados Unidos. Israel faz parte de uma constelação mais ampla que constitui os interesses dos EUA em todo o mundo.

O anúncio de Trump sobre os Montes Golã, não é apenas uma ameaça ao Médio Oriente - é uma ameaça para o mundo inteiro, porque reifica as políticas de supremacia racial e fascismo. A resposta deve ser similar entre as pessoas que se opõem a essas tendências violentas nas suas comunidades e em todo o mundo.


*Noura Erakat é advogada de direitos humanos e professora assistente na George Mason University. Ela é autora de Justice for Some: Law in the Question of Palestine (Stanford University Press, 2019).


O República Digital tem a autorização e permissão para republicação deste artigo do site de Jornalismo Independente, Truthout.org.

segunda-feira, 25 de março de 2019

O 'REICHSTAAT' DA UE EM DESORDEM SISTÉMICA: O PRESSÁGIO DE UMA 'LONGA GUERRA'

Pode a UE reformar-se? Pode sobreviver? As opções são difíceis: se o resto da Europa não conseguir sobreviver à 'fechadura' do Bundesbank no euro, então a solução óbvia seria que a Alemanha e os seus aliados de excedente de exportação saíssem. Mas quem pode forçar o sistema alemão a ceder um benefício tão claro e presente? O substituto de Draghi como chefe do BCE provavelmente será outro candidato do Bundesbank. E o paradigma de um mundo hiper-financeirizado e dirigido pelo crédito não é apenas a criação da Europa. Está incorporado nos EUA também. A UE caminha em sintonia com ela e os seus beneficiários pretendem derrubar todos os que a ameaçam. No entanto, a "insurreição" não vai simplesmente desaparecer. A profunda sensação de crescente desigualdade é igualada apenas por temores populares de redes de segurança comunitárias que foram desmanteladas e pela insegurança de viver perpetuadamente à beira da extinção económica. A intolerância oficial da UE apenas exacerba a polarização e aumenta a raiva. O Brexit é visto por alguns como um 'outlier' para os distúrbios da UE - que simplesmente reflecte a insularidade britânica e pode ser desconsiderado. Mas eles poderão estar errados. É um episódio carregado para o que está definido para ser uma "longa guerra". Os próximos capítulos já são claros: Les Gillets Jaunes em França, La Lega em Itália, AfD na Alemanha, as eleições para o parlamento europeu em Maio, o grupo Visegrad, Vox em Espanha, etc. etc. O Brexit é meramente o canário do mine shaft, aviso de perigo próximo. Os contra-revolucionários (como na Grã-Bretanha) estão determinados a esmagar toda a insurreição: Isto será altamente preocupante.


Por Alastair Crooke


"Se o euro falhar, a Europa fracassará", disse Angela Merkel. "E, de facto, o fracasso do projecto europeu é agora uma possibilidade real: a União Monetária não é mais vista como irreversível, e nem a UE", escreve o professor Guido Montani, da Universidade de Pádua.

Sim - mas a profunda natureza estrutural da crise e a concomitante ameaça percebida ao alemão e aos interesses reinantes do euro-elite sugerem que qualquer solução será tão brutalmente disputada quanto o Brexit no Reino Unido. É um prenúncio - e alerta para o colapso da coesão nacional que está por vir.

Depois de anos de austeridade e estagnação entre alguns estados da UE, está claro que tanto a estrutura - e a cultura da União - insistiu numa Alemanha do pós-guerra, que está a enfrentar uma crescente insurreição, uma exigência por mudança - tanto de estados membros, e agora, significativamente, mesmo de dentro da própria Alemanha.

No entanto, seria inteiramente perder a noção de reduzir o que está a ocorrer a um argumento sobre a "austeridade" monetária e fiscal. A "exigência por mudança" também reflecte outra divisão - uma divisão cultural. É uma "divisão" que está no coração da própria Alemanha, bem como dentro de outros estados da UE.

Os  alemães exigentes  desafiam - de uma perspectiva estritamente alemã - a própria mentalidade Reichstaat que enquadra a união monetária da UE e a sua noção de um "império" de diversos povos convergindo para os "valores" transnacionais da UE, sob a austera disciplina da regulação do governo central, direito e controle fiscal.

Fisicamente, a "divisão" alemã é simbolizada pelo rio Elba, que corta uma linha aproximadamente diagonal do Mar do Norte até à fronteira polaco-checa, e que tem sido mais do que uma via navegável, há pelo menos 21 séculos. Os imperadores romanos não se atreviam a ir além do Elba: era a fronteira oriental do império de Carlos Magno também. E de alguma forma significa uma barreira cultural que persistiu nos tempos modernos - com efeito drástico. Três décadas após a queda do Muro de Berlim, a divisão entre a Alemanha Oriental e a Ocidental ainda é palpável.

Um líder da AfD na Saxônia-Anhalt coloca assim a situação: “Deixe-me esclarecer: a AfD não quer uma revolução, mas queremos uma reforma completa para tornar a Alemanha mais adequada à mentalidade do Oriente e aos impulsos que aqui são criados”. Ele clama por um renascimento das “virtudes prussianas clássicas, tais como a franqueza, senso de justiça, honestidade, disciplina, pontualidade, ordem, trabalho duro e obediência” - em justaposição ao liberalismo contemporâneo de “culpa”.

O surgimento de uma alternativa viável à política de "sistema" da CDU é tão importante, precisamente por causa do papel que esse partido desempenhou historicamente, no cenário da estrutura da UE e na imposição de seu ethos.

Noah Strote, escrevendo no Foreign policy, observa :

“Os fundadores da CDU, a maioria dos quais oriundos das regiões ocidentais da Alemanha, onde o cristianismo [católico romano] está historicamente mais enraizado, votaram originalmente no apoio ao nazismo. Longe de ser um acaso, a sua aliança foi uma consequência lógica dos medos demográficos: o homem que se tornaria o líder do partido e primeiro chanceler, Konrad Adenauer, não estava sozinho na sua crença de que a parte nordeste do seu país - o coração da Prússia, com a sua capital em Berlim - era povoada por uma raça de mestiços, asiática, não inteiramente branca, cuja cultura não-cristã ameaçava espalhar-se. Enquanto Adolf Hitler, antes de chegar ao poder, era suspeito por muitas razões; pelo menos ele prometeu proteger a identidade cristã da nação de tais elementos perniciosos ...

Depois da Segunda Guerra Mundial… esses mesmos políticos surgiram para oferecer uma nova visão para a política alemã, europeia e mundial - desta vez com um parceiro mais confiável e poderoso, os Estados Unidos da América. Distanciando-se do nazismo, eles defendiam uma “imagem cristã” da política baseada nos valores da liberdade individual, liberdade económica e a abertura cultural. A visão atraiu os EUA ocupantes, que acabaram inclinando as balas a favor da CDU ... [Apelou também para] líderes da CDU como Adenauer, que estavam secretamente satisfeitos pelo seu coração cristão estar agora demograficamente isolado dos asiáticos ...

O que a AfD [agora] está ansiosa para mostrar é que Merkel e a CDU não ousarão lutar pelo que ela sempre afirmou valorizar: a conservação de uma Alemanha e de uma Europa cristã  [isto é, parando a imigração]. E ao fazê-lo, eles estão expondo a tensão [hipocrisia?] Inerente ao programa da CDU: a suposição reprimida de que a manutenção de um certo tipo de maioria étnica é necessária para esse projecto.

A AfD alega que não é mais merecedor do rótulo “nacionalista branco” do que a CDU histórica, sobre a qual ela é modelado… [e] a palavra “alternativa” traz o dever duplo como uma descrição do objectivo do partido de se tornar o verdadeiro guardião da Identidade da Alemanha - e da Europa - cristã ”.

O que a AfD está a dizer é que Merkel - e a visão liberal da CDU de um Reichstaat europeu - não está apenas a fracassar como veículo económico (principalmente por ter concentrado a riqueza no “centro” da Alemanha Ocidental), mas também está a fracassar em segundo lugar por não preservar a coerência interna da Europa. E que a suspensão da recente imigração muçulmana é essencial para garantir uma certa homogeneidade cultural que não sobrecarregue a população nativa (ou seja, preservar a homogeneidade nacional, deve superar o globalismo da UE).

Estamos a falar aqui de velhas divisões: toda a Alemanha Oriental (que era muito maior do que agora, antes de 1945) foi, durante 800 anos, terra disputada entre alemães e eslavos, até que a Prússia conseguiu derrotar e anexar toda a Alemanha entre 1866 e 1871. O legado dessa unificação tem sido nesse sentido à espreita de um Outro sempre presente e potencialmente hostil, não inteiramente 'branco', ao qual Adenauer era tão sensível.

Ou, em outras palavras, a divisão permanece entre, por um lado, a CDU Alemanha do "bom alemão" (liberal, democrático, à prova de crise e estável), e, por outro lado, os"alemães maus" orientais , cuja experiência tem sido tão diferente, segundo Konstantin Richter: “[Para] aqueles que foram educados na RDA… não houve reconhecimento de culpa e nenhuma sensação de expiação. (Os socialistas no Oriente consideravam [pelo contrário] o Ocidente [para ser] o único sucessor da Alemanha nazista). Como resultado, muitos alemães orientais sentem que a identidade do "bom alemão" não é deles, e eles se ressentem do facto de que isso está a ser imposto a eles ... Schuldkult , eles chamam de "o culto da culpa".

Se o leitor detecta muitas ressonâncias com os EUA hoje (os 'deploráveis' que rejeitam a 'culpa' de ser branco), e com a experiência italiana do 'Mezzogiorno' (que rejeita a depreciação de ser o 'sul atrasado'), ele ou ela quase certamente estaria certo.

No entanto, marcar o segundo ponto dessa exigência de mudança é uma séria revolta contra a visão económica alemã Reichstaat do que é necessário para que ela própria (e a Europa) se torne um "império" económico europeu.

No entanto, o aspecto económico dos descontentamentos económicos da Europa actual remonta à experiência traumática da Alemanha com a hiperinflação entre guerras, a Grande Depressão dos anos 1930 e a erosão social a que ela chegou. Para exorcizar esses fantasmas, a Alemanha deliberadamente pintou a UE num sistema automático de disciplina de austeridade, reforçado por meio de um banco central supervisionado por alemães (o BCE).

O bloco foi "fechado com rapidez" na automaticidade (ou seja, nos "mecanismos automáticos de estabilização" da Europa). Isso foi permitido por outros estados europeus, já que parecia ser a única maneira (dizia-se) de que a Alemanha concordasse em colocar a sua reverenciada "Arca" do agora estável Marco Alemão no "pote" comum do MCE (Mercado Comum Europeu).

O Professor Paul Krugman explica:

Como que [então] a Europa conseguiu seguir uma política monetária comum? Isso foi um pouco de hipocrisia bem calculada. Embora o SME fosse, em princípio, um sistema simétrico, com todos os países tratados igualmente, na prática era tacitamente governado como uma hegemonia alemã: o Bundesbank fixava as taxas de juros como bem entendesse, e outros bancos centrais faziam o necessário para manter suas moedas atreladas ao marco alemão. Esse arranjo permitiu que o sistema atendesse a duas exigências aparentemente inconciliáveis: a insistência dos alemães, que ainda se lembram da hiperinflação de 1923 e do milagre económico que se seguiu à introdução de uma nova moeda estável em 1948, que o seu amado Bundesbank mantém a sua mão firme no leme monetário; e o imperativo político de que qualquer instituição europeia deve parecer uma associação de iguais, não uma nova, hum, Reich. Os europeus, eles são uma raça subtil.

Mas, na verdade, a união monetária, essa subtileza não funcionará mais, porque uma moeda verdadeiramente unificada deve ter alguém - um Banco Central Europeu - explicitamente responsável. Como essa instituição poderia ser criada para dar a cada país uma voz igual, mas satisfazer a exigência alemã por uma rectidão monetária garantida? 

A resposta foi colocar o novo sistema em piloto automático, pré-programando-o para fazer o que os alemães teriam feito se ainda estivessem no comando. Primeiro, o novo banco central - o BCE - seria uma instituição autónoma, tão livre quanto possível da influência política. Em segundo lugar, seria dado um mandato claro e muito restrito: estabilidade de preços, período - nenhuma responsabilidade, em absoluto, por coisas esponjosas como o emprego ou o crescimento. Terceiro, o primeiro chefe do BCE, nomeado para um mandato de oito anos, seria alguém mais garantido do que alemão: W. Duisenberg, que liderou o banco central holandês durante um período em que o seu trabalho consistia quase inteiramente em sombreamento, fose lá o que o Bundesbank fazia.

Finalmente, no caso dos governos serem tentados a usar o seu controle sobre tributação e gastos para desafiar o controle do BCE sobre a política monetária, a Alemanha insistiu num "pacto de estabilidade" que limitava a capacidade dos governos da Holanda de administrar déficits orçamentários. 

A Der Spiegel escrevia em  editorial em Março de 2015, que não é errado falar da ascensão de um 'Quarto Reich': “Isso pode soar absurdo, dado que a Alemanha de hoje é uma democracia bem sucedida sem um traço de nacional-socialismo - e que ninguém iria realmente associar Merkel com o nazismo. Mas uma reflexão posterior sobre a palavra "Reich", ou império, pode não estar totalmente fora de lugar. O termo refere-se a um domínio, com um poder central exercendo controle sobre muitos povos diferentes. De acordo com essa definição, seria errado falar de um Reich alemão no campo económico?

Um ambicioso "projecto de Império", mas a experiência cada vez mais está a ser questionada: "A Alemanha não criou estabilidade ... mas instabilidade na Europa. A retórica da Alemanha centra-se na estabilidade: fala de uma "união de estabilidade" e orgulha-se da sua Stabilitätskultur , ou "cultura de estabilidade". Mas a sua definição do conceito é extremamente estreita: quando a Alemanha fala em estabilidade, isso significa estabilidade de preços e nada mais. Na verdade, ao tentar exportar a sua "cultura de estabilidade", a Alemanha criou, em um sentido mais amplo, instabilidade ... Muitos outros países da zona do euro vêem as regras como interesses nacionais da Alemanha, e não deles, explica Hans Kundnani em The Paradox of German Power.

Assim como o Bundesbank definiu a taxa de câmbio em 1: 1 na unificação das duas Alemanhas na zona do euro, o que impedia qualquer perspectiva de que o Oriente pudesse competir com o Ocidente, também a Itália (e outros Estados excedentes não exportadores) as moedas super-avaliadas, ao se fundirem ao novo euro, experimentaram algo parecido com o desaparecimento da base de fabricação da Alemanha Oriental.

Para muitos no Oriente, a unificação alemã em 1990 não foi uma fusão de iguais, mas sim uma “Anschluss” (anexação), com a Alemanha Ocidental a tomar a Alemanha Oriental. Razões para o desencanto da Alemanha Oriental podem ser vistas em toda a parte: a população oriental encolheu cerca de 2 milhões, o desemprego aumentou, os jovens estão a afastar-se em massa e o que era uma das principais nações industriais do Bloco Oriental agora está desprovida de indústria.

E aqui está o núcleo da crise. Tem havido um apelo de todos os lados para tentar algo diferente: como relaxar as regras fiscais que estão destruindo os serviços públicos, ou simplesmente tocar na "corrente eléctrica" ​​da reforma do sistema financeiro e bancário.

E aqui está o problema: todas essas iniciativas são proibidas neste sistema de tratado fechado. Todos podem pensar em revisar esses tratados, mas isso não vai acontecer. Os tratados são intocáveis, precisamente porque a Alemanha acredita (ou diz que acredita) que, para afrouxar a sua influência disciplinada sobre o sistema monetário, seria abrir a Caixa de Pandora aos fantasmas da inflação e da instabilidade social surgindo para nos assombrar de novo.

A realidade é que o "lock-down" europeu deriva de um sistema que removeu voluntariamente o poder dos parlamentos e governos, e consagrou a automaticidade desse sistema em tratados que só podem ser revisados ​​por procedimentos extraordinários. Ninguém em Bruxelas vê qualquer possibilidade de "isso" acontecer - por isso o "registo" de Bruxelas está emperrado: repetindo o mantra de "Não há alternativa" (TINA) para mais e mais aprofundada integração no euro.

Assim, um sistema em impasse está em colisão directa com uma insurreição crescente contra um euro-Reichstaat e contra as desigualdades e a fragmentação social inerentes a um mundo hiper-financeirizado.

Pode a UE reformar-se? Pode sobreviver? As opções são difíceis: se o resto da Europa não conseguir sobreviver à 'fechadura' do Bundesbank no euro, então a solução óbvia seria que a Alemanha e os seus aliados de excedente de exportação saíssem. Mas quem pode forçar o sistema alemão a ceder um benefício tão claro e presente? O substituto de Draghi como chefe do BCE provavelmente será outro candidato do Bundesbank. E o paradigma de um mundo hiper-financeirizado e dirigido pelo crédito não é apenas a criação da Europa. Está incorporado nos EUA também. A UE caminha em sintonia com ela e os seus beneficiários pretendem derrubar todos os que a ameaçam.

No entanto, a "insurreição" não vai simplesmente desaparecer. A profunda sensação de crescente desigualdade é igualada apenas por temores populares de redes de segurança comunitárias que foram desmanteladas e pela insegurança de viver perpetuadamente à beira da extinção económica. A intolerância oficial da UE apenas exacerba a polarização e aumenta a raiva.

O Brexit é visto por alguns como um 'outlier' para os distúrbios da UE - que simplesmente reflecte a insularidade britânica e pode ser desconsiderado. Mas eles poderão estar errados. É um episódio carregado para o que está definido para ser uma "longa guerra". Os próximos capítulos já são claros: Les Gillets Jaunes em França, La Lega em Itália, AfD na Alemanha, as eleições para o parlamento europeu em Maio, o grupo Visegrad, Vox em Espanha, etc. etc. O Brexit é meramente o canário do mine shaft, aviso de perigo próximo. Os contra-revolucionários (como na Grã-Bretanha) estão determinados a esmagar toda a insurreição: Isto será altamente preocupante.

https://www.strategic-culture.org

Tradução:

Paulo Ramires

sexta-feira, 22 de março de 2019

A POLÍTICA ENERGÉTICA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA



O Secretário de Estado americano, Mike Pompeo, o qual foi, ele mesmo, antigo dirigente da empresa de equipamento petrolífero Sentry International, pediu a ajuda dos seus antigos colegas para pôr em marcha a sua nova política energética. A sua démarche acontece quando os Estados Unidos se tornaram, em onze anos, o primeiro produtor mundial de hidrocarbonetos do mundo, à frente da Arábia Saudita e da Rússia, graças ao petróleo e ao gás de xisto.

Falando perante a CERAWeek em Houston, a 12 de Março de 2019 [1], ele lembrou 
ter lançado sanções contra o Irão a fim de o interditar de exportar hidrocarbonetos; 
outras contra a Venezuela, que deverão excluí-la provisoriamente do mercado mundial; 
e manter o seu Exército no Leste da Síria para a impedir de explorar os seus recursos.

Nesse contexto, o Departamento de Estado espera que a produção dos EUA possa substituir-se na União Europeia à da Rússia e na Ásia à do Irão. Assim, ele estabeleceu um gabinete de Recursos Energéticos dirigido por Francis Fannon.

Agora, os Estados Unidos pressionam a UE para que abandone o projecto Nord Stream 2 [2], e a Opep + para que cesse de reduzir a sua produção de maneira a deixar uma margem de manobra aos países importadores. Simultaneamente, encorajam os países consumidores a dotar-se de novos portos permitindo acolher os petroleiros e navios-tanque de gás dos EUA, em vez de depender dos oleodutos russos.

Esta política deverá acompanhar-se de esforços para reduzir a procura nos Estados Unidos.

Por seu lado , a OPEP + (quer dizer, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo e mais dez outros Actores) realizou uma reunião ministerial, a 17 de Março, em Baku (Azerbaijão). Ela constatou a dificuldade em prever o mercado à medida que as autorizações temporárias para comprar petróleo iraniano chegarem ao fim e quando as sanções contra a Venezuela se efectivarão apenas em Abril. O cartel, que se havia constituído em 2016 quando o preço do petróleo bruto era de US $ 40 dólares por barril, pretende continuar a organizar o mercado em alta (hoje, o preço do barril está a cerca de US $ 70 dólares). Ele deverá anular a sua reunião de Abril e esperar por Junho para tomar decisões.

voltairenet.org
Tradução 
Alva

quinta-feira, 21 de março de 2019

O CONFRONTO ENTRE POPULISTAS E TRADICIONALISTAS MOLDARÃO A EUROPA

A razão de existir esta confrontação acesa entre estes grupos reside no facto de tradicionalistas e populistas terem visões diferentes para a União Europeia. Os tradicionalistas defendem uma Europa burocrática o mais federalista possível, já os populistas defendem uma Europa das Nações onde se preserve a identidade de cada povo, maior democracia e menos imigração. Na verdade, o maior inimigo da União Europeia nem são os populistas, mas sim a sua estrutura burocrática, antidemocrática onde tudo se decide longe do cidadão. 



Paulo Ramires

É um facto que a Europa e os europeus estão cansados da União Europeia tal como ela está organizada, e desta forma corre um risco maior do que é dito pelos partidos tradicionalistas, normalmente pró-europeus. A União Europeia é um produto da globalização que veio beneficiar bastante a elite governativa e financeira, dando espaço aos partidos políticos tradicionais para expandir os seus interesses políticos e as suas clientelas partidárias mas não beneficiou particularmente em nada o cidadão comum, além dos mais, os partidos tradicionalistas parecem não se ter apercebido de que muita coisa está a mudar na Europa e mais ainda irá mudar. Tanto à esquerda como à direita, os partidos políticos tradicionalistas em Portugal não apresentaram um único projecto de reforma para a União Europeia ou ideias para melhorar a vida dos cidadãos. Em Portugal a campanha eleitoral tem sido pior do que paupérrima, ficando a ideia que os candidatos querem ser eleitos mas não querem mudanças. Existe um consenso alargado para que os partidos populistas não possam ser aceites no sistema politico-partidário que existe em Portugal e que é preciso combate-los para que não se desenvolvam ou assumam alguma expressão eleitoral, só por esta razão mostra o quanto democrático são os partidos tradicionalistas portugueses, um deles, o PCP, ainda afirmou que a democracia é uma questão de opinião, isto a propósito do regime da Coreia do Norte. Não, a democracia não é uma questão de opinião e pelos vistos o PCP não sabe o que é uma democracia ou não se identifica com ela. Portugal tem aliás um dos sistemas políticos com menos variedade política e partidária na União Europeia, o que é negativo. Por exemplo, não há partidos alternativos, modernos, populistas e progressistas, e deveria haver, todos eles, da esquerda à direita são tradicionalistas. Não tendo nenhum deles apresentado um projecto de reforma da União Europeia, seria bom que eles entendessem que tal como está a União Europeia arrisca-se a implodir ou a serem os partidos populistas a liderarem essas mudanças na Europa. O edifício político-administrativo é demasiado burocrático servindo em particular uma elite financeira que até está além da politica, mas está bastante longe dos cidadãos sem ter conseguido alcançar os seus objectivos sociais permitindo em vez disso o enriquecimento desmesurado dessa elite.

Essa é uma das razões por estar a surgir uma certa revolta latente contra uma elite corrupta, antidemocrática, partidocrática e plutocrática, que só tende a aumentar com o aumento da iniquidade. 

Alguns destes sinais são o Brexit, os argumentos dos britânicos para terem votado para sair da União Europeia, foram uma maior independência do Reino Unido em relação à União Europeia, o medo da imigração, o relacionamento difícil com a União Europeia e também mais democracia, coisa que os partidos tradicionalistas ao contrário dos populistas não desejam. O surgimento do movimento não orgânico dos Coletes Amarelos em França e a simpatia por eles em outros países como Portugal ou a Bélgica diz-nos precisamente isso, e este movimento é de cariz populista, isto é, assume-se como anti-sistema, anti-neoliberal, anti-globalista, e defende uma democracia mais ampla que possa abranger e beneficiar todos os cidadãos e não só as elites políticas e financeiras como acontece actualmente. Os Coletes Amarelos são formados exactamente pelas camadas populacionais marginalizadas pelas elites partidárias subjugadas ao poder financeiro, nas ruas de Paris, gritam por revolução e pela demissão de Emmanuel Macron que serve as elites financeiras. Mas esta revolta parece estar a ultrapassar o contexto francês, muitos outros cidadãos não franceses estão a identificar-se com esta luta, mostrando o seu apoio nas redes sociais e traduzindo um sentimento de que as elites já não podem representar os cidadãos porque a confiança foi quebrada, a representação não é efectiva, e estando o mundo em crise, o passo necessário a dar é envolver o cidadão nas estruturas de decisão da democracia, caso contrário não será uma democracia, mas uma partidocracia. Este movimento é ainda apoiado por donativos.

A subida ao poder da La Lega e do Movimento 5 estrela em Itália é outro indicador de um grande divórcio das populações pelos partidos tradicionais, a La Lega e o Movimento 5 estrela são partidos populistas, o primeiro de extrema-direita defensor da democracia, da regionalização, eurocéptico, liberal e anti-globalista, o segundo defende um populismo anti-sistema tendo várias causas, nomeadamente a democracia directa, o ambientalismo, e o eurocepticismo. Na Alemanha, forças políticas idênticas destacam-se no panorama político, o AfD( Alternativa para a Alemanha) liderado por Jörg Mouthen e Alexander Gaulana, vão na mesma linha defendendo a democracia directa, o eurocepticismo, o conservadorismo nacional e políticas anti-imigração. O VOX em Espanha, partido de extrema-direita conservadora, neoliberal e eurocéptico, apresenta-se como um partido mais de extrema direita clássica que propriamente populista mas que poderá eleger 7 eurodeputados. Em França as sondagens mostram que a extrema-direita populista e democrática, representada pelo Rassemblement National de Marine Le Pen deverá ter a mesma percentagem que a aliança do Mouvement Democrate e o La République en Marche de Emmanuel Macron. Também os populistas de esquerda da La France insoumise sobem ligeiramente. Na República Checa os populistas (aqui a ideologia de esquerda e direita parece não fazer sentido) governam o país destacadamente em relação ao segundo partido político, o Partido Pirata da Republica Checa. 

No que respeita aos grupos parlamentares europeus, os socialistas têm perdido bastante popularidade, enquanto os populistas de esquerda e direita têm subido significativamente segundo as sondagens. O maior grupo do parlamento europeu, o Grupo do Partido Popular, tem se mantido estável. 

Isto significa que haverá uma maior confrontação entre populistas, a maioria eurocéptica, anti-sistema, soberanista e democrática, e os partidos tradicionais, sistémicos e europeístas. A razão de existir esta confrontação acesa entre estes grupos reside no facto de tradicionalistas e populistas terem visões diferentes para a União Europeia. Os tradicionalistas defendem uma Europa burocrática o mais federalista possível, já os populistas defendem uma Europa das Nações onde se preserve a identidade de cada povo, maior democracia e menos imigração. Na verdade, o maior inimigo da União Europeia nem são os populistas, mas sim a sua estrutura burocrática, antidemocrática onde tudo se decide longe do cidadão. 

No entanto há que se contar com factores externos à própria União Europeia, o americano George Soros suporta esta elite financeira havendo mesmo uma lista da organização de Soros, a Open Society European Policy Institute onde são integrados os partidos de extrema-esquerda e centro esquerda, os populistas têm recebido apoio de um outro bilionário o americano Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, que espera unir todos os populistas sob o seu movimento, 'The Movement' que tem como objectivo dar mais direitos de soberania para os países da UE, fronteiras mais fortes, menos migração e a erradicação da Europa do que chama de islamismo radical. O Open Society European Policy Institute defende justamente o oposto. 

Todo este jogo entre estes dois movimentos não é novo, mas vai definir o futuro da União Europeia à margem do próprio eleitorado europeu. Não é de forma alguma do interesse europeu haver estas intromissões externas na União Europeia, que podem também elas vir a enfraquecer a União Europeia. Ora isto está a ser bastante descurado por aqueles que defendem o status quo da União Europeia.

Assim a transformação recomendada à União Europeia é desburocratizar todo o sistema europeu e construir a democracia mais completa e ampla quanto possível, para isso deve haver partidos políticos com disponibilidade para uma reforma das instituições no sentido de aproximar as pessoas das decisões de Bruxelas.




Este mapa interactivo apresenta uma projecção dos lugares para as eleições para o Parlamento Europeu de 2019 por país e grupo de partidos. 


sábado, 16 de março de 2019

PARIS: MANIFESTAÇÕES EVOLUEM PARA GRAVES CONFRONTOS

"Isto não é uma manifestação, é uma revolução" dizia um dos coletes amarelos em Paris

Grande manifestação dos coletes amarelos em Paris provoca a destruição de muitas lojas e incêndios em várias estruturas urbanas e edifícios. Os protestos que se iniciaram pela primeira vez a 17 de Novembro com milhares de pessoas e que já vai na 18.ª organização são verdadeiras batalhas campais na qual os promotores pedem a demissão do governo de Macron que tem alinhado e representado as elites financeiras em detrimento dos cidadãos. 

Os coletes amarelos são organizados pela France en Colère, liderado por Éric Drouet que têm como objectivo a demissão de Emmanuel Macron, o melhormente de questões sociais como o aumento do salário mínimo e o melhormente da democracia. Os protestos ou melhor o conflito com as autoridades têm também provocado vários feridos e mortos. A Comunicação social tradicional não tem dado um verdadeiro destaque a estes acontecimentos tendo em conta a importância para toda a Europa.

sábado, 9 de março de 2019

A EUROPA E A CARTA DE MACRON AOS EUROPEUS

A democracia defende-se com a participação directa dos cidadãos, coisa que actualmente não acontece, mais democracia deveria ser o caminho a seguir, e mais democracia significa proximidade do cidadão e dar-lhe voz.

Paulo Ramires

O presidente Emmanuel Macron dirigiu-se aos europeus através de uma carta publicada em vários jornais em plena campanha propondo algumas reformas na União Europeia, admitindo inclusive rever os tratados da União Europeia. Debaixo de uma contestação intensa interna e externa pelos próprios europeus admite-se que ele foi hábil ao escrever o conteúdo desta carta que apesar de eleitoral é positiva. Repare-se que ele consegue identificar o que os europeus vêm pedindo em três palavras: “Liberdade, Protecção e progresso”. Mas vai mais longe ao identificar precisamente estas necessidades ao dizer que “O humanismo europeu é uma exigência de acção. E por toda a parte os cidadãos exigem participar na mudança.” Na verdade, mudança é uma palavra chave para seguir em frente. Os humanistas sabem muito bem que isto é verdade. Macron ainda fala em organizar-se uma conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o projecto político europeu, uma conferência onde podem participar painéis de cidadãos, acidémicos e até religiosos, é algo diferente e que poderá tentar resolver problemas que afectam a União Europeu como é o distanciamento dos cidadãos ou a falta de democracidade das instituições europeias. Todavia se essa conferencia se realizar, e espera-se que sim, ela poderá ter a oposição dos partidocratas, burocratas e outros pouco dados a mudanças nas instituições europeias e sem ideias ou visão para o que deve ser a União Europeia, mas mesma assim, pensam que merecem serem eleitos, ora é uma péssima ideia votar-se em políticos sem ideias mas que apostam unicamente no situacionismo burocrático europeu, mesmo sabendo que a Europa precisa de mudanças profundas urgentemente porque vai num sentido crescente de incompatibilidade com o sentir do cidadão europeu. 

Macron propôs ainda uma “Agência europeia de protecção das democracias”, algo totalmente disparatado e até perigoso na medida em que as democracias devem ser tuteladas pelos cidadãos e não por agências supranacionais dirigidas sabe-se lá por quem. Imagine-se o que seria essa agência proibir partidos políticos contrários à ideia de uma União Europeia ou restringir a liberdade de actuação dos movimentos e partidos democráticos a pretexto de não defender a União Europeia ou ainda legislar sobre o controlo de informação, coisa que aliás vai sendo feita para pânico de alguns media mais independentes do sistema, isso não é bom, pois não? A democracia defende-se com a participação directa dos cidadãos, coisa que actualmente ainda não acontece, mais democracia deveria ser o caminho a seguir, e mais democracia significa proximidade do cidadão e dar-lhe voz. Os "velhos do Restelo" são na verdade um entrave para que essas mudanças possam acontecer, pelo que não seria interessante vê-los ganhar nas urnas. A abstenção elevada em sistemas partidocratas poderá ser muito positivo porque força a uma transformação muito necessária nos actuais regimes, já nas democracias, a abstenção é penalizadora. Uma coisa é certa os ventos de transformação e mudança já começaram a soprar, resta saber se os candidatos europeus vão aproveitar esse vento ou preferir navegar à bolina. 

ALGUNS PROBLEMAS EUROPEUS 

Mas quais são os problemas europeus? Não será muito fácil de elenca-los a todos porque os povos europeus têm maneiras dispares no que toca à formulação do futuro e prioridades da União Europeia. A falta de democracia no bloco sempre foi uma das críticas mais ou menos transversal a todos os países membros. A igualdade é outro dos problemas que estão por resolver. A imigração não é um problema muito grande para Portugal, mas é importante no contexto europeu, nomeadamente em países com taxas de imigração altas como é o caso da França, Suécia, Holanda, Reino Unido, etc. É verdade que o centralismo humanista se preocupa com os imigrantes, mas há que se entender que levas intermináveis de imigrantes, podem provocar disrupção nas sociedades e cultura europeia como está a acontecer actualmente. Uma outra questão prende-se com o facto de a União Europeia se focar excessivamente nas questões económico-financeiras e não nos cidadãos ‒ um exemplo disso é o conteúdo do Tratado de Maastricht. Verifica-se também que as grandes empresas que actuam no mercado europeu não contribuem o suficiente para os estados europeus havendo diferentes critérios nos níveis de contribuição para os estados europeus o que provoca um certo desequilíbrio e concorrência desleal no mercado comum europeu. Um outro enorme problema que existe na Europa e que afecta a maioria dos estados membros são as assimetrias regionais, diferenças de desenvolvimento entre os centros de desenvolvimento e as preferias no contexto nacional e europeu. Em Portugal esta questão é particularmente dramática e deveria ser tida em conta. A protecção social depende muito de país para país, mas em Portugal como em outros países fica muito aquém do que é exigido. Estes são apenas alguns dos muitos problemas que podem ser discutidos. 

1) O problema das instituições europeias e a sua falta de democracidade deveria merecer também a atenção dos candidatos ao parlamento europeu, seria importante conhecer-se as suas propostas e ideias para a democratização das instituições europeias ‒ coisas concretas. 

Será assim tão irrealista haver um presidente europeu eleito directamente nos países membros com os vários grupos partidários a apresentarem cada um o seu próprio candidato em vez de negociações nada transparentes e dependentes dos interesses económicos e da correlação de forças dos partidos políticos. Será assim tão irrealista a criação de um comité do cidadão, onde o cidadão europeu participe, quando já existe um comité económico social? Será assim tão irrealista um fórum do cidadão que incluísse eurodeputados e que visasse uma maior participação e interacção do cidadão? 

2) A imigração não poderia ser resolvida com o apoio aos países de origem e a limitação aos imigrantes que tivessem a vontade de se integrar de acordo com os valores europeus? Verifica-se na Europa que boa parte dos imigrantes traz consigo a sua cultura, religião e costumes próprios, muitas vezes incompatíveis com os valores europeus. A não adaptação deles às sociedades europeias é contraproducente e provoca insatisfação em muitos países. Neste aspecto a revisão do espaço Schengen poderia ser verdadeiramente repensado. 

3) As assimetrias regionais poderiam ser colmatadas pelo menos em parte com benefícios económico-fiscais para as empresas que se estabelecessem em zonas periféricas ou do interior, ou a criação de estruturas rodoviárias e ferroviárias que ligassem eficazmente os centros e a preferia. 

O EXÉRCITO EUROPEU 

Fará sentido um exército europeu a sério como defendem o presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler Angela Merkel? A resposta a esta pergunta depende de outras questões que deverão ser equacionadas em primeiro lugar, nomeadamente que UE se deseja construir, se o caminho for no sentido de se desejar uma Europa mais coesa, solidária, federativa ou confederativa, então um exército europeu fará todo o sentido e seria até recomendável, por outro lado se o caminho for para uma Europa menos integrada e com mais preocupações nacionais, então um exercito europeu não só não fará sentido como seria inclusive um contra senso. Partimos assim do pressuposto de que os estados membros desejam mais integração e independência dos EUA. Neste contexto faria sentido um exército europeu de forma a contrariar a ideia de um gigante com pés de barro, isto é, um espaço económico importante sem correspondência política e militar ao mesmo nível.  O problema com o exército europeu é que, primeiro, a União Europeia não tem corpos de decisão eleitos para tomar decisões que envolvam militares de vários países, essas decisões só podem ser tomadas com um presidente eleito directamente. Segundo, um exército europeu poderia reduzir o campo de acção externa dos estados membros, em particular os pequenos e médios estados, que têm as suas especificidades políticas e históricas nas relações com os demais países, além do mais, a integração de um corpo militar europeu com várias línguas diferentes e filosofias militares diferentes constituiria um problema não muito simples de por em prática.

São muitos os temas que devem e podem ser abordados pelos candidatos a eurodeputados em vez dos habituais discursos vazios ou com floreados.

quarta-feira, 6 de março de 2019

OPINIÃO DE EMMANUEL MACRON: POR UM RENASCIMENTO EUROPEU

Liberdade, protecção, progresso. Devemos construir sobre esses alicerces um Renascimento europeu. Não podemos deixar os nacionalistas sem solução explorar a ira dos povos. Não podemos ser os sonâmbulos de uma Europa amolecida. Não podemos permanecer na rotina e nas proclamações. O humanismo europeu é uma exigência de acção. E por toda parte os cidadãos exigem participar na mudança. Até ao fim do ano, com os representantes das instituições europeias e dos Estados, organizemos uma Conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o nosso projecto político, sem tabu, nem mesmo a revisão dos tratados. Esta Conferência deverá associar painéis de cidadãos, auscultar os académicos, os parceiros sociais, os representantes religiosos e espirituais. Definirá um roteiro para a União europeia traduzindo em acções concretas essas grandes prioridades. Haverá divergências, mas será melhor uma Europa parada ou uma Europa que progride por vezes em ritmos diferentes, mas permanecendo aberta a todos?


Emmanuel Macron decidiu falar aos europeus escrevendo uma carta publicada em vários jornais de referencia europeus, nela fala de um Renascimento Europeu, da criação de uma "Agência europeia de protecção das democracias" e admitindo a necessidade de rever os tratados europeus.

Cidadãos da Europa, se tomo a liberdade de dirigir-me directamente a vós, não é somente em nome da história e dos valores que nos unem. É porque a situação é de urgência. Dentro de algumas semanas, as eleições europeias serão decisivas para o futuro do nosso continente.

Nunca desde a Segunda Guerra mundial se afigurou tão necessária a Europa. No entanto, nunca a Europa esteve em situação tão perigosa.

O Brexit é o símbolo desse perigo. Símbolo da crise da Europa, que não soube responder às necessidades de protecção dos povos face aos grandes choques do mundo contemporâneo. Símbolo, também, da armadilha europeia. Não é a pertença à União europeia que é a armadilha; são a mentira e a irresponsabilidade que a podem destruir. Quem disse a verdade aos Britânicos sobre o seu futuro após o Brexit? Quem lhes falou da perda do acesso ao mercado europeu? Quem evocou os riscos para a paz na Irlanda com a reposição da fronteira do passado? O recuo nacionalista nada propõe; apenas rejeita, não projecta. E esta armadilha ameaça toda a Europa: os exploradores da ira, sustentados pelas falsas informações prometem mundos e fundos.

Face a essas manipulações, devemos manter-nos de pé. Orgulhosos e lúcidos. Dizer, antes de mais, o que é a Europa. É um sucesso histórico: a reconciliação de um continente devastado, num projecto inédito de paz, de prosperidade e de liberdade. Nunca o esqueçamos. E esse projecto continua a proteger-nos hoje: que país pode enfrentar, sozinho, as estratégias agressivas de grandes potências? Quem pode almejar ser soberano sozinho perante os gigantes do sector digital? Como resistiríamos às crises do capitalismo financeiro sem o euro, que é uma força para toda a União? A Europa significa também milhares de projectos do quotidiano que transformaram a face dos nossos territórios: este liceu renovado, aquela estrada construída, o acesso rápido à Internet a chegar, por fim. Este combate exige um compromisso a cada dia, pois a Europa e a paz não são dados adquiridos. Em nome da França, travo este combate sem descanso para fazer progredir a Europa e defender o seu modelo. Mostrámos que aquilo que era considerado inalcançável, a criação de uma defesa europeia ou a protecção dos direitos sociais, era possível.

Mas é preciso fazer mais, mais depressa. Pois existe a outra armadilha, a do status quo e da resignação. Perante os grandes choques do mundo, os cidadãos tantas vezes nos dizem: "Onde está a Europa? O que faz a Europa?". Para eles, ela transformou-se num mercado sem alma. Ora, a Europa não é meramente um mercado, é um projecto. Um mercado é útil, mas não deve fazer esquecer a necessidade de fronteiras que protegem e de valores que unem. Os nacionalistas enganam-se quando afirmam defender a nossa identidade com o recuo da Europa, pois é a civilização europeia que nos reúne, que nos liberta e nos protege. Contudo, aqueles que não querem que nada mude também se enganam, pois negam os receios que os nossos povos sentem, as dúvidas que assolam as nossas democracias. Estamos a viver um momento decisivo para o nosso continente; um momento em que, colectivamente, devemos reinventar política e culturalmente as formas da nossa civilização num mundo em transformação. Chegou a hora do Renascimento europeu. Por isso, resistindo às tentações do recuo e das divisões, proponho-vos construirmos, juntos, este Renascimento em torno de três ambições: a liberdade, a protecção e o progresso.

Defender a nossa liberdade

O modelo europeu assenta na liberdade humana, na diversidade das opiniões, da criação. A nossa liberdade primeira é a liberdade democrática, a de escolher os nossos dirigentes apesar de potências estrangeiras procurarem, a cada eleição, influenciar os nossos votos. Proponho a criação de uma Agência europeia de protecção das democracias que providenciará peritos europeus para cada Estado membro para proteger o seu processo eleitoral contra os ciberataques e as manipulações. Neste espírito de independência, também devemos proibir o financiamento dos partidos políticos europeus por potências estrangeiras. Devemos banir da Internet, com regras europeias, todos os discursos de ódio e de violência, pois o respeito pelo indivíduo é o alicerce da nossa civilização de dignidade.

Proteger o nosso continente

Fundada com base na reconciliação interna, a União europeia esqueceu-se de olhar para as realidades do mundo. Nenhuma comunidade é capaz de suscitar um sentimento de pertença se não possuir limites que ela protege. A fronteira representa a liberdade com segurança. Logo, devemos repensar o espaço Schengen: todos os que querem ser parte desse espaço devem cumprir obrigações de responsabilidade (controlo rigoroso das fronteiras) e de solidariedade (a mesma política de asilo, com as mesmas regras de acolhimento e de recusa). Uma polícia de fronteiras comum e um serviço europeu de asilo, estritas obrigações de controlo, uma solidariedade europeia para a qual contribui cada país, sob a autoridade de um Conselho europeu de segurança interna: acredito, face às migrações, numa Europa que protege ao mesmo tempo os seus valores e as suas fronteiras.

As mesmas exigências devem aplicar-se à defesa. Foram realizados importantes progressos nos últimos dois anos, mas precisamos de um rumo claro: um tratado de defesa e de segurança deverá definir as nossas obrigações indispensáveis, em cooperação com a OTAN e os nossos aliados europeus: aumento das despesas militares, cláusula de defesa mútua operacionalizada, Conselho de segurança europeu associando o Reino Unido para preparar as nossas decisões colectivas.

As nossas fronteiras também devem garantir uma concorrência equitativa. Que potência no mundo aceita continuar as suas trocas com quem não respeita nenhuma das suas regras? Não podemos suportar sem nada dizer. Devemos reformar a nossa política de concorrência, repensar a nossa política comercial: punir ou proibir na Europa as empresas que prejudicam os nossos interesses estratégicos e os nossos valores essenciais, como as normas ambientais, a protecção dos dados e o justo pagamento do imposto; e assumir, nas indústrias estratégicas e nos nossos concursos públicos, uma preferência europeia, tal como o fazem os nossos concorrentes americanos ou chineses.

Resgatar o espírito de progresso

A Europa não é uma potência de segunda categoria. A Europa toda é uma vanguarda: sempre soube definir as normas do progresso. Por isso, ela deve propugnar um projecto de convergência mais do que de concorrência: a Europa, onde foi criada a segurança social, deve construir, para cada trabalhador, de Leste a Oeste e de Norte a Sul, um escudo social que garanta a mesma remuneração no mesmo local de trabalho e um salário mínimo europeu, adaptado a cada país e discutido colectivamente a cada ano.

Resgatar o progresso significa também liderar o combate ecológico. Como poderemos encarar os nossos filhos se não reduzirmos também a nossa dívida climática? A União europeia deve determinar a sua ambição - 0 carbono em 2050, reduzir para metade os pesticidas em 2025 - e adaptar as suas políticas a essa exigência: um Banco europeu do clima para financiar a transição ecológica; uma força sanitária europeia para reforçar os controlos dos nossos alimentos; contra a ameaça dos lobbies, uma avaliação científica independente das substâncias perigosas para o ambiente e a saúde... Esse imperativo deve nortear toda a nossa acção; desde o Banco central até a Comissão europeia, desde o orçamento europeu até o plano de investimento para a Europa, todas as nossas instituições devem inserir o clima no âmago do seu mandato.

O progresso e a liberdade significam poder viver dos proventos do seu trabalho: para criar empregos, a Europa deve antecipar. Por isso é que ela deve, não só regulamentar os gigantes do sector digital, com a criação de uma supervisão europeia das grandes plataformas (sanções aceleradas em caso de violação da concorrência, transparência dos seus algoritmos...), mas também financiar a inovação dotando o novo Conselho europeu da inovação com um orçamento comparável ao dos Estados Unidos, para conduzir as novas rupturas tecnológicas, como a inteligência artificial.

Uma Europa que se projecta no mundo deve estar voltada para África, com a qual devemos formar um pacto de futuro. Assumindo um destino comum, apoiando o seu desenvolvimento de maneira ambiciosa e não defensiva: investimento, parcerias universitárias, educação das raparigas...

Liberdade, protecção, progresso. Devemos construir sobre esses alicerces um Renascimento europeu. Não podemos deixar os nacionalistas sem solução explorar a ira dos povos. Não podemos ser os sonâmbulos de uma Europa amolecida. Não podemos permanecer na rotina e nas proclamações. O humanismo europeu é uma exigência de acção. E por toda parte os cidadãos exigem participar na mudança. Até ao fim do ano, com os representantes das instituições europeias e dos Estados, organizemos uma Conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o nosso projecto político, sem tabu, nem mesmo a revisão dos tratados. Esta Conferência deverá associar painéis de cidadãos, auscultar os académicos, os parceiros sociais, os representantes religiosos e espirituais. Definirá um roteiro para a União europeia traduzindo em acções concretas essas grandes prioridades. Haverá divergências, mas será melhor uma Europa parada ou uma Europa que progride por vezes em ritmos diferentes, mas permanecendo aberta a todos?

Nesta Europa, os povos reassumirão verdadeiramente o controlo do seu destino; nesta Europa, o Reino Unido, tenho a certeza, encontrará o seu devido lugar.

Cidadãos da Europa, o impasse do Brexit é uma lição para todos. Devemos sair dessa armadilha e dar um sentido às eleições vindouras e ao nosso projecto. Cabe-vos, a vós, decidirem se a Europa, os seus valores de progresso, devem ser mais do que um parêntese na história. Eis a escolha que vos proponho, para traçarmos juntos o caminho rumo a um Renascimento europeu.

Project Syndicate, 2019.

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