março 2022
O República Digital faz todos os esforços para levar até si os melhores artigos de opinião e análise, se gosta de ler o RD considere contribuir para o RD a fim de continuar o seu trabalho de promover a informação alternativa e independente no RD. Apoie o RD porque ele é a alternativa portuguesa aos média corporativos.

terça-feira, 22 de março de 2022

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA




Por Carlos Matos Gomes

Consequências da Guerra (2)

Esta invasão e esta guerra destruíram o precário e periclitante equilíbrio de forças em que o mundo tinha vivido desde o fim da Guerra Fria e da implosão da URSS. Esta é a sua primeira consequência.

As discussões sobre uma (mais uma)”nova ordem mundial” destes últimos anos costumavam girar à volta de duas visões alternativas: Para uns deveria assentar num acordo entre as 3 principais potências (EUA, Rússia e China) capaz de impulsionar a cooperação multilateral.

Para outros, aquela ordem deveria resultar do estabelecimento de esferas de influência que, uma vez respeitadas, constituiriam a forma mais segura e eficaz de estabelecer a paz no mundo, ou uma situação de conflito adormecido.

Esta invasão revelou a escolha das oligarquias das 3 superpotências e do anexo que é a União Europeia.

Como tem acontecido com frequência ao longo da história um acontecimento imprevisto ou de consequências mal calculadas provocou uma rutura e desencadeou um confronto.

O que estava em jogo desde o fim da URSS e da emergência da China como superpotência militar e económica era e é dividir o mundo, não em três fatias, mas mantê-lo na lógica bipolar do duelo. Desde os anos 90 do século passado que se trava a guerra insidiosa de eliminar um dos competidores, neste caso a Rússia, para que os dois outros, os EUA e a China, se possam defrontar num duelo que segue o argumento dos filmes de gangues mafiosos, ou de cena final de filme de cowboys.

A Rússia não aceitou servir de cordeiro sacrificado e desencadeou uma guerra por antecipação. Escolheu o tempo que considerou ser-lhe mais favorável para combater, já que o lugar, a Ucrânia fora escolhido pelo adversário, os EUA.

O que está em jogo nesta invasão pode ser interpretado como o primeiro ato de uma manobra de conquista de poder — militar e económico — para estabelecer uma posição de domínio numa «Nova Ordem Mundial». O que está em causa é a distribuição do poder entre oligarquias reunidas à volta de 3 vértices e em 3 zonas de concentração de interesses.

Independentemente do resultado das operações militares, da maior ou menor destruição, dos futuros estatutos territoriais, das lideranças políticas, uma coisa é certa: a Ucrânia passou à condição de ferida aberta no coração da Europa. Uma ferida que ninguém saberá quando sarará, e se sarará!

O resultado já visível das decisões tomadas pelos dirigentes políticos americanos e europeus tiveram como consequência dividir o mundo em dois blocos, um constituído pelos EUA e os seus satélites da NATO, mais a Austrália, o “velho Ocidente”, e outro constituído pela Rússia, a China e porventura a Índia.

Esta guerra expulsou a Rússia da Europa! Expulsou-a militar, política, científica e até civilizacionalmente. Veja-se o corte de relações de organização universitárias e de investigação europeias e americanas com congéneres russas, de cancelamento de encontros científicos e culturais, de proibição de concertos de música ou de bailado, de colóquios sobre literatura. Tolstoi passou a ser asiático, assim como Tchaikovski! A presidente da Comissão Europeia afirmou com a energia que se lhe conhece e com a alegria vivaça de uma missionária que a Ucrânia de Zelenski fazia parte da família europeia. A Rússia não!

Uma das consequências desta guerra foi uma amputação histórica, já que a geográfica era impossível de materializar, a não ser com um Muro. Mais um!

A divisão do mundo resultante da expulsão da Rússia da Europa, com a criação de dois blocos gerará um mais conjunto de fronteiras e barreiras. As sanções económicas americanas à Rússia provocarão a mais rápida criação de uma moeda de troca internacional alternativa do dólar, constituída pelo rublo, o yuan e a rupia. Os europeus pagarão mais caro as emissões de dólares pelos EUA.

As sanções tecnológicas conduzirão a sistemas de transmissão de dados alternativos à Internet e tendencialmente incompatíveis, o que obrigará a redundâncias e aos respetivos custos.

A cooperação na área do ambiente, dos mares, do espaço, da saúde será reduzida e desenvolvida por cada um dos blocos, segundo os seus interesses. O comércio mundial entre os dois blocos será limitado e controlado, mesmo que a China procure atenuar os efeitos.

Esta guerra apresentada como um conflito de sociedades livres e solidárias contra sociedades agressivas e egoístas terá como efeito reduzir a solidariedade internacional e a cooperação: os refugiados de todo o mundo, as vítimas de guerras e calamidades serão ainda mais abandonados.

As Nações Unidas e as suas Agências serão ainda mais desprezadas, da ACNUR à UNICEF, da UNESCO à OMS. A cooperação nas várias áreas da investigação científica será restringida ao interior do respetivo bloco.

Deixaremos de ser cidadãos do mundo. Seremos regionalizados, racializados, bloqueados. Seremos todos o «outro» em metade do mundo!

E a União Europeia? Trauteia!

Percebe-se com clareza a estratégia e os objetivos dos Estados Unidos, da Rússia e a China. Percebe-se até o papel de atores secundários, da Turquia, do Irão, de Israel, na fronteira do conflito. O que de todo não se percebe é o papel da União Europeia, no centro do conflito, teatro de operações, base de ataque, base logística, base de recolha de refugiados!

Os europeus vão sofrer com inflação, desvio de verbas destinadas à melhoria das condições de vida, dos serviços de saúde, de educação, de segurança social — que serão privatizados porque não haverá recursos para eles -, de defesa do ambiente, de transição energética, para transferir verbas para um estupido rearmamento, e estúpido porque inútil, apenas lucrativo para os negociantes de armamento, as empresas do complexo militar-industrial americano.

Os europeus vão sofrer uma violenta degradação do seu emprego, em particular do emprego qualificado e bem pago. As indústrias que produzem bens e serviços de alto valor acrescentado serão americanas. O aeroespacial será americano. A Airbus, por exemplo, será inviabilizada em favor da Boeing, como aconteceu com a Embraer brasileira, a EADS (Eurospace, Aeronautical and Defense Systems) que agrega a indústria aeronáutica e aeroespacial europeia e inclui entre outras grandes empresas a Airbus, a Eurocopter, a Rolls-Royce –Turbomeca (produtores de turbinas que concorrem com a General Electric GE) desaparecerão porque o complexo militar-industrial da muito liberal América não aprecia a concorrência.

Os tão “satisfeitinhos consigomesmo” dirigentes da União Europeia afirmam sorridentes e efusivos que estão unidos. Se existissem jornalistas e não sacristãos para dizer ámen haveria que lhes perguntar porque estão satisfeitos e o que têm preparado para o futuro.

Esta guerra é também um furúnculo de onde se está a reunir e a purgar o pior que existe na humanidade, e na Europa, em particular. Os grupos neonazis que integram as forças da Rússia e da Ucrânia, o Wagner Group, o Russian Imperial Movement (RIM), uma organização paramilitar supremacista branca russa compete no mesmo plano com o conhecido Regimento Azov da Ucrânia, mas na retaguarda destes estão outros movimentos totalitários irmãos, nacionalistas, supremacistas instalados no topo do poder político de estados da União Europeia na Polónia, um estado teocrático e racista, na Hungria, na Roménia, na Eslováquia, nos países bálticos.

Não é pois a defesa de valores e princípios resultantes do liberalismo e da Revolução Francesa, de Justiça, Igualdade e Solidariedade que a União Europeia está a defender com a sua política relativamente à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Também não é a obtenção de vantagens económicas: os europeus vão empobrecer com as suas opções e pagar mais pelos produtos essenciais. Nem sequer com desgraça União Europeia lucrará: a reconstrução da Ucrânia será feita por empresas chinesas, e serão chineses os trabalhadores, não os refugiados da Europa.

Se não existem razões de ética, de princípios que justifiquem a opção da UE, se não existem vantagens económicas, se não há questões de segurança, a pergunta que se faz ao ver os sorrisos abertos dos dirigentes europeus é a mesma que se faz às hienas: de que se riem as hienas?

Que objetivos propõem os dirigentes europeus para a Europa neste conflito, porque deles depende o futuro dos povos europeus para o próximo longo futuro?

Independentemente da opinião que cada um de nós possa ter sobre a UE, ela existe, nós fazemos parte dela. Sem ela cada Estado seria ainda mais irrelevante do que o conjunto já é e parece aceitar ser, mas com ela neste estado e com este naipe de dirigentes estamos, enquanto europeus e nacionais dos Estados Europeus, na mesma posição em que os Estados Unidos colocaram Zelenski, o seu homem, na posição dos entalados. Em Portugal temos a figura de Martim Moniz.

O que se ouve dos dirigentes da UE é um discurso absurdo, paradoxal: solidariedade com os refugiados!

Mas como se materializa a solidariedade, tomando a situação da Ucrânia como de irreversível domínio russo e de inultrapassável animosidade com a Rússia, dado que a União cortou todas as pontes? Receber os refugiados temporariamente para os reenviar de regresso? Mas que novo poder estará em Kiev para os receber?

E com quem negociará a UE, se atirou a Rússia para a Ásia, ao cortar relações políticas, económicas, financeiras, culturais, até universitárias, se atirou a Rússia para a órbita da China, que cobrará o seu apoio.

A outra parte do discurso dos dirigentes da UE é ainda mais irracional: o discurso do rearmamento da UE. Esse rearmamento é inútil, estúpido a vários títulos. A Europa vai comprar armas americanas (F35 da Lockheed, para a Alemanha, p.ex), carros de combate, navios, artilharia… uma sofisticada e caríssima parafernália em que todos os dinky toys dependem do GPS americano! Sem os satélites americanos todos estão cegos.

A Europa não tem uma política militar aeroespacial, não dispõe de um sistema de geolocalização, sequer! Também não tem redes de transmissão de dados (internet) e também não tem armas nucleares para dissuasão. Por fim: os Estados Unidos jamais permitirão que a Europa seja uma grande potência militar. Quer apenas uma força auxiliar, não um competidor.

A supremacia política e militar dos Estados Unidos traduzir-se-á numa supremacia económica, com resultados devastadores para o emprego dos europeus e para a sua qualidade de vida. Não só o estado social será substituído pelo estado liberal americano — destruição de serviços públicos e segurança social — mas as grandes companhias de alta tecnologia serão americanas. A Europa aumentará a dependência energética dos EUA assim como a dependência alimentar.

O gás russo irá para a China, assim como os seus cereais e os da Ucrânia. Os dirigentes da UE trocaram a dependência diversificada, pela dependência de um só fornecedor!

O que podem fazer os cidadãos europeus neste novo mundo para contrariar esta nova e negra ordem mundial?

Mandatar alguém de boa índole, de fora das cúrias das capitais europeias, sem falsos sorrisos, perguntar a Joe Biden, na sua visita imperial à Europa a 24 de Março, a que preço os Estados Unidos fornecerão gás e cereais à Europa, que lugar terá a UE no programa espacial americano, que liberdade terá a UE para fazer contratos noutra moeda que não seja o dólar, por exemplo. E por fim, perguntar-lhe se, para viver em paz na Europa, os Estados Unidos vão exigir aos europeus, como nos Estados Unidos nos tempos do macharthismo, se serão obrigados a assinar uma declaração anti russa, ou a usar uma estrela vermelha na roupa caso o não façam.

sexta-feira, 18 de março de 2022

COMO COMEÇOU, COMO TERMINARÁ


Por Daniel Vaz de Carvalho, in Resistir, 16/03/2022

“Trinta anos após o fim da Guerra Fria, estamos enfrentando um esforço determinado para redefinir a ordem multilateral.

É um ato de desafio. É um manifesto revisionismo, o manifesto para rever a ordem mundial”

Josep Borell, Alto Representante da UE

“Nós não aceitamos ser dominados pela NATO”

S. Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia

1 – Os contextos

Com o fim da URSS, os EUA declararam-se vencedores da Guerra Fria. Detêm mais de 750 bases militares em 80 países diferentes, o dólar reserva monetária global. Desde então acharam poder definir as regras de governo de todos os países e sancioná-los, agredi-los ou mesmo invadi-los se as violassem. Criaram-se assim duas suposições que se mostraram fatalmente erradas: que o monopólio dos EUA sobre o uso da força duraria para sempre e que os EUA poderiam continuar a impor uma ordem mundial “baseada em regras”, as suas.

Estas ilusões terminaram com a intervenção da Rússia na Síria. Os EUA enfrentam uma nova era em que não podem mais mudar os regimes pela força das armas ou sanções, depois dos danos causados pelos conflitos EUA/NATO no Afeganistão, Iraque, Síria, Iémen, Líbia, Jugoslávia, etc, ou as sanções a Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Rússia, China, etc.

O estatuto a que os EUA se promoveram não comporta nem admite potências como a Rússia e a China. O ressurgimento da Rússia não estava nos planos imperialistas. A Rússia foi buscar ao seu passado soviético na cultura, ciência, avanços militares, a força para se libertar do estatuto de colónia que lhe queriam impor e ser desmembrada.

Salientamos três contextos desta crise. A primeira reflexão é sobre a tese Leninista de que capitalismo e guerra são inseparáveis. Um mundo de paz só é possível em socialismo. Os propagandistas do sistema capitalista argumentam que o comércio livre e a democracia são obstáculos às guerras: as democracias nunca se atacaram e o comércio livre acaba por sobrepor-se a quaisquer outros interesses. Esquecem que a maioria das guerras do mundo moderno e mesmo antes tiveram origem precisamente no desejo ou necessidade de expandir e dominar mercados. Quanto à democracia o raciocínio está certo quando por democracia se define o que os EUA entendem como tal, a partir daqui tudo passa a ser possível contra os “outros”.

A segunda reflexão é a diabolização dos que são designados adversários. Assim acontece a todos que defendem a soberania, escolhem outro modelo de sistema político e/ou económico, que pretendam controlar transnacionais ou movimentos financeiros no seu país. Como disse o antigo diplomata Alastair Crooke, com a incapacidade de escutar o “outro”, de compreender as suas razões e interesses próprios, fecha-se a via diplomática. A negociação e a diplomacia ficam comprometidas com a diabolização dos interlocutores e a fraseologia maniqueísta. A liderança dos EUA perdeu quase inteiramente a capacidade de empatia, a capacidade de “ouvir o outro”, tornou-se “um livro fechado”. Toma então lugar a tese de Clausewitz: a guerra é a política por outros meios.

Note-se que Hitler e o nazismo nunca foram diabolizados antes da guerra se iniciar. Mesmo depois de 1939, a França e a Inglaterra preparavam-se para alinhar com a Alemanha contra a URSS no caso da Finlândia.

A terceira reflexão é o papel dos media. Para controlar as pessoas fazem com que percam a memória, ignorem factos passados e impõem uma narrativa. Desde que a Rússia começou a libertar-se do pesadelo instituído por Ieltsin e pretendeu assumir um papel de igualdade na cena internacional, à semelhança de Roma relativamente a Cartago, foi desencadeado o clamor de Delenda est Rússia. Atualmente, no espaço EUA/NATO a desinformação atingiu um nível inaudito de falsidades e absurdos, agravada com o bloqueio da informação russa.

Diz Caitlin Johnstone, durante cinco anos fomos bombardeados com narrativas histéricas anti-russas. Os falsos escândalos da Rússia foram inventados pela inteligência dos EUA para fabricar consentimento para um confronto com a Rússia e preservar a hegemonia unipolar dos EUA.

Há dois pesos e duas medidas conforme as agressões são cometidas “por nós” (EUA/NATO) ou “por eles”. Quando misseis Patriot caiam sobre uma indefesa Bagdade o que passou nos media não foi revolta, nem empatia pelo sofrimento e morte de civis, foi a contemplação admirativa pelo poder militar e tecnológico dos EUA. Quando a Sérvia foi bombardeada durante 78 dias, para o atual secretário-geral da ONU, A. Guterres, tratava-se de defender os “direitos humanos.”

Com este argumento (ou outro) desde 2001 a 2018 as guerras EUA/NATO teriam morto pelo menos 2 milhões de pessoas, tudo pelas “boas causas” da NATO. Cidades como Fallujah, Ramadi, Sirte, Kobane, Mosul e Raqqa reduzidas a escombros, guerras que mergulharam sociedades inteiras em violência e caos sem fim.

Não se trata da parte dos EUA/NATO de defender a Ucrânia, se não teria sido aceite o tratado de segurança coletivo na Europa, proposto por Putin, posto de parte com evasivas e exigências sobre a Rússia quanto à movimentação de tropas no seu território, enquanto informalmente a Ucrânia era alinhada com a NATO.

Um texto do jornal Guardian recordava, citando numerosas personalidades que desde os anos 1990 advertiam que expandir a NATO para Leste conduziria à guerra. Estas advertências foram ignoradas. Agora o projeto “Mobilidade Militar” obriga a Áustria, a Suécia e a Finlândia a fornecer capacidades de transporte para que a NATO possa transferir suas forças armadas.

Com as agressões pós 2001 a NATO mostrou que não é uma organização defensiva: é um dos meios militares para os EUA imporem o poder global. Quebrando o acordo com Gorbachov, a NATO expandiu-se para 14 países do Leste. A Rússia ficou confinada nas suas fronteiras, Moscovo a minutos de ser atingida a partir de bases da NATO e as suas relações externas condicionadas por sanções desde que a Rússia renasceu do abismo para onde as camarilhas de Gorbatchov e Ieltsin a tinham levado. (ver textos de Dimitri Rogozin aqui e aqui). Com novas expansões previstas na Ucrânia, Geórgia, falhadas na Bielorrússia e Cazaquistão, estavam criadas as condições para “uma tempestade perfeita”.

A Ucrânia tornou-se a frente avançada contra a Rússia. Os EUA entregaram à Ucrânia, desde 2014, 2,4 mil milhões de dólares em material militar, incluindo 450 milhões em 2021 (agora destruído). Desde 2014, a UE e instituições financeiras europeias entregaram mais de 17 mil milhões de euros à Ucrânia, e um plano de investimentos de 6 mil milhões de euros, sem condições, o que não foi feito para Portugal ou a Grécia. O FMI, violando as suas próprias regras de garantias financeiras, proporcionou 1,7 mil milhões de dólares em 2015, e estava a preparar-se com o BM para entregar mais 5,2 mil milhões. [NR]

Estavam previstos exercícios militares com cinco potências da NATO nas regiões orientais da Ucrânia e realizar “ações defensivas, a fim de restaurar a fronteira do Estado.” Claro que “restaurar as fronteiras do Estado” nunca seria com ações “defensivas”.

2 – A Situação

Que ganhou a Ucrânia, pacífica até então, com o golpe de 2014? Foi usada contra a Rússia, mostrando que o imperialismo apenas consegue espalhar o caos onde intervém, criando esta situação ao recusar os direitos da Rússia na segurança europeia. O que se passa tem pouco a ver com a Ucrânia, em si, mas na obsessão dos falcões de Washington com a Rússia e Putin, nunca aceitando a ascensão da Rússia que eclipsaria o controlo dos EUA sobre a restante Europa.

O acordo de Minsk (2014), nunca cumprido pela Ucrânia com apoio da NATO, foi uma forma de ganhar tempo, para ser rearmada e treinada pela NATO para voltar a atacar o Donbass. Na primavera de 2021, Zelensky anunciou que a Ucrânia retomaria a Crimeia à força. A Rússia então organizou grandes manobras militares. Em novembro, a Ucrânia declarou que retomaria o Donbass à força. A Rússia novamente encenou manobras militares, mas desta vez a situação piorou ainda mais. A partir de meados de fevereiro, os monitores da OSCE em torno de Donbass relatavam um aumento das violações do cessar-fogo e explosões.

A “operação especial da Rússia para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia” começou após um pedido de assistência militar feito pelas recém-reconhecidas repúblicas populares de Lugansk e Donetsk. O presidente russo salientou que os habitantes russófonos têm sido sujeitos a um genocídio nessa região. “A Rússia não começou ações militares, está a terminá-las após oito anos de guerra no Donbass. “Durante todos esses oito anos, tentámos apelar à consciência do Ocidente e lidar com esse regime, que adquiriu todos os traços do ultra-radicalismo e do neonazismo. Durante esse tempo, 13 a 14 mil pessoas foram mortas. Mais de 500 crianças foram mortas ou feridas. Os EUA/NATO nada fizeram, limitaram-se a olhar para o lado.

Note-se que o Donbass recusou-se a aceitar a violação da Constituição ucraniana pelo golpe de Estado fomentado pelos EUA. A Ucrânia após 2014, não passou de um peão sacrificado no tabuleiro internacional (Caitlin Jonhstone). O que a situação atual mostra é que os EUA provocam problemas globalmente, mas são incapazes de os resolver.

Em primeiro lugar, a Rússia não podia ficar ociosa diante da situação em que a NATO controla a sua zona estratégica circundante, expandindo-se mesmo para os países da Comunidade de Estados Independentes (CEI) ameaçando a sua segurança. Acima de tudo, a Rússia não permite que a Ucrânia sirva de base militar para ameaçá-la com armas nucleares, agravada com a descoberta (certamente já de conhecimento dos serviços secretos russos) de laboratórios de armas biológicas na Ucrânia.

Nos dois primeiros dias da operação de “desmilitarizarão e desnazificação” da Ucrânia, o exército russo tinha destruído 821 alvos da infraestrutura militar da Ucrânia, aeródromos militares, postos de comando, centros de comunicação, sistemas de mísseis antiaéreos S-300 e Osa, estações de radar, aviões de combate, helicópteros, veículos aéreos não tripulados, assim como veículos blindados, sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e veículos militares especiais. Foram destruídas oito embarcações militares da Marinha Ucraniana” e estabelecido o controlo total sobre a cidade de Melitopol, no sul do país. Em 01 de março, o acesso ao mar de Azov pelas tropas ucranianas ficou completamente bloqueado. Em 05 de março, o total de alvos da infraestrutura militar da Ucrânia destruídos era de 2 037, segundo o Ministério da Defesa russo.

Na RTP-3 (25/fev/21h30) o general Cunha dos Santos, expôs, com a competência que não existe nos “comentadores”, que sem cobertura aérea o exército ucraniano deixa de fazer sentido em termos militares modernos. O apelo à população civil para se armar e lutar é mandar essas pessoas para a morte. É um sinal de fraqueza, não uma atitude digna. Colocar artilharia pesada e lança foguetes no interior de cidades é proibido pela convenção de Genebra. (criar escudos humanos). Os líderes ocidentais incentivaram este governo ucraniano (…) tiveram um comportamento no limite do criminoso.

E este comportamento persiste. A UE vai dar 500 milhões de euros em armas e combustível para a Ucrânia, embora os apoios sociais e a empresas em dificuldades devido às sanções à Rússia tenham de sair dos Orçamentos de Estado – mais endividamento…

O dilema para os russos é a luta nas cidades. Eles querem que no fim haja ucranianos amigos. Isto complica-se com o problema de limpar os nazis de Mariupol sabendo que usam as pessoas da cidade como reféns. O mesmo problema existe, em menor grau, noutras cidades. Em 11 de março, 12 corredores humanitários estavam ativos em quatro regiões para permitir retirar civis. Entretanto fechava-se o cerco a Kiev e Kviv.

As sanções, usadas indiscriminadamente pelos EUA contra quem não lhe agrada, não resultaram com Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Irão, Rússia ou China, etc, o que mostra os limites de poder e o declínio do império incapaz de levar de vencida os que não se lhe submetem.

O atual plano de “sanções do inferno“, proibindo exportações de energia da Rússia é um tiro nos pés, ou mesmo mais acima, para a UE. Cerca de 45% do gás natural da UE veio da Rússia em 2021, a Rússia também é o maior fornecedor de petróleo da Europa. Washington está a aproveitar o sentimento de insegurança que reina na UE para intensificar em seu benefício a crise. As consequências das sanções foram com detalhe analisadas por Pepe Escobar, Irina Slav, Michael Hudson.

Nesta situação a UE coloca-se ao nível do Egito aquando protetorado britânico em que quem mandava eram os Altos Comissários Gerais britânicos, que acumulavam a função de cônsules gerais do Império Britânico no Egito. A NATO tornou-se um órgão de formulação de política externa da UE que aceita ser um “apêndice” obediente ao ponto de não dominar os seus interesses económicos.

3 – Cenários

No I Ching, livro das adivinhações chinês, há um capítulo sobre as crises. Ali diz-se que quando uma crise está iminente há sempre três avisos, quando chega o último já nada a impede. Os dois primeiros avisos foram desprezados pelos EUA/NATO, o terceiro identificamo-lo no discurso de Putin de 21 de fevereiro. Antes Vladimir Putin comunicou aos EUA/NATO os limites das suas linhas vermelhas, esperando uma resposta concreta desde novembro de 2021, após o que, tomaria contra medidas. Podemos agora distinguir três cenários e mais um:

– Um acordo de segurança na Europa entre a NATO e a Rússia, mas tal será improvável tanto na visão da Rússia como da China até que surja uma nova ordem mundial. Concluíram que não é mais possível partilhar uma sociedade global com os EUA, determinados a impor ao mundo uma hegemonia em que as suas leis e determinações se sobrepõem à soberania, decisões de outros países e mesmo da ONU.

– Os custos económicos e humanos das sanções serão tão catastróficos que Putin seria deposto por pró-oligarcas ocidentais. Desde 2014 são aplicadas sanções à Rússia. A economia russa provou ser notavelmente à prova de sanções. Hoje a economia da Rússia é muito mais resiliente a sanções do que era em 2014. A história das “sanções do Inferno” não é credível. O resultado pode bem ser a desdolarização da economia global e uma escassez maciça de matérias-primas à escala mundial. Neste cenário a UE é o perdedor económico e político principal.

A votação na ONU contra a Rússia mostra que a “comunidade internacional” liderada pelos EUA encolhe: embora tenha recolhido 141 votos a favor, 5 votos contra e 35 abstenções (a Venezuela perdeu direito de voto por dívidas à ONU) mostrou que em temos populacionais a maioria do globo não alinha com os EUA. Quanto às “sanções do inferno” são seguidas somente pela UE, Albânia, Reino Unido, Islândia, Canadá, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Macedónia do Norte, Singapura, EUA, Ucrânia, Montenegro, Suíça, Japão e Taiwan, mais cinco mini-Estados: Andorra, Liechtenstein, Micronésia, Mónaco, San Marino. Veja-se que nesta conjuntura África, América Latina, Ásia, se afastam da chamada “comunidade internacional”. A propaganda diz: “a Rússia está isolada”…

– Outro cenário que os EUA/NATO preparam é envolver a Rússia numa guerra de guerrilha tornando os custos da invasão proibitivos em termos de perdas militares e económicas. Segundo a Rússia os mercenários enviados pelo Ocidente não serão considerados combatentes. Segundo o direito internacional, eles não têm direito a receber o estatuto de prisioneiro de guerra e “o melhor que pode acontecer em caso de serem presos é enfrentar responsabilidade criminal.”

No caso de a Rússia expulsar o governo Zelensky do país, os EUA, como nada aprenderam com a “experiência” Guaidó e outras, podem preparar um governo ucraniano no exílio e uma longa rebelião apoiada por milhares de milhões de dólares.

Neste cenário os “comentadores” acham que quanto mais longo for o conflito mais difícil será a China apoiar a Rússia. Mas têm pouco a que se agarrar. A “amizade China-Rússia é sólida como a rocha e livre de interferências de quaisquer terceiras partes”, disse o conselheiro de Estado e ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi. “Como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, China e Rússia são importantes vizinhos e parceiros estratégicos um do outro. Estes laços são uma das relações bilaterais mais cruciais do mundo, a nossa cooperação não só traz benefícios e bem-estar para nossos povos, mas também contribui para a paz, estabilidade e desenvolvimento mundial.”

– Uma guerra mundial não é um cenário que possa ser posto de parte. A Rússia afirma lutar pela sua existência, mas também os EUA como império global. Sem esta condição em que se tornariam os EUA, um país ultra endividado?

Vladimir Putin avisou que quem tentasse impedir a Rússia de atingir os seus objetivos na Ucrânia iria sofrer “consequências nunca vistas na sua história”, dias mais tarde, perante a hipótese de intervenção direta da NATO, foi ordenado que as forças de dissuasão nucleares russas fossem colocadas em modo especial de serviço de combate. A Rússia é uma das duas potências nucleares mais poderosas, tendo vantagens numa gama de armas de última geração.

Em vez de ter o realismo de reconhecer os interesses russos ao longo de sua fronteira ocidental – e buscar um terreno comum de colaboração sobre os problemas mundiais e não intervenção nas políticas internas de cada Estado, os EUA escolheram o confronto, com o risco de um conflito militar crescente.

O fim da invasão e da guerra na Ucrânia só pode ser garantido se a própria segurança da Rússia for garantida. A segurança é em grande parte indivisível. Este é um princípio fundamental em que a Rússia insiste com razão. Porém o Ocidente recusou-se a reconhecer os direitos iguais da Rússia na organização da segurança europeia – que levaria ao fim do controlo dos EUA sobre a Europa.

Após uma luta dolorosa a Europa buscará a reconciliação. A América será mais lenta: os falcões de Washington tentarão redobrar esforços. E será a situação económica que poderá em última análise determinar o “quando”. (Alastair Crooke)

A questão é: como terminará este conflito. Tal como as paixões (no dizer dos psicólogos) ou termina na loucura ou pelo esgotamento. De qualquer forma, o império ao levar a Ucrânia à destruição para submeter a Rússia, já garantiu o fim do mundo unipolar. Destruídas infraestruturas militares ucranianas criadas pela NATO e os batalhões nazis como o Azov, que mantêm refém o povo de Mariupol, capturando os seus líderes, vivos ou mortos. A Rússia está em condições de negociar uma nova arquitetura política para a Ucrânia, libertada de fascistas poderosos e sendo restauradas políticas pacíficas. Os próprios ucranianos devem decidir, como continuar a viver. Uma Ucrânia Federal reconhecendo a independência das Republicas de Lugansk e de Donetsk incluíndo Mariupol tal como após a proclamação desta República em 2014, perdida depois para as forças ucranianas, será o plano russo. Funcionará?

O verdadeiro terrorismo mediático desencadeado – em contradição com o que enviados especiais relatam no terreno! – encobre a impotência ocidental, impedindo a tomada de consciência dos povos para as crises e perigos existentes. É urgente um novo padrão de política externa de cooperação internacional e desmilitarização.

O empenho dos EUA em criar um conflito na Ucrânia foi um erro estratégico que pode bem ser o fim da Europa da NATO. A situação permanecerá com todos os perigos latentes até os povos se questionarem por que terão de pagar por armas dos EUA que apenas os colocam em perigo, pagar preços mais altos pelo GNL e petróleo, pagar mais por cereais e matérias-primas antes produzidas na Rússia e perder exportações.

Outros teatros de confronto geostratégico desenrolam-se com a China no Mar do Sul da China, com Taiwan e no Médio Oriente. No Médio Oriente há uma tentativa de contenção do Irão e da China. O ataque de drones aos Emirados Árabes Unidos, aliados dos EUA, em janeiro (reivindicado pelos hutis) está ligado ao controlo do estreito de Bab al Mandeb, essencial para a Nova Rota da Seda Marítima da China. O seu controlo pelos EUA compromete os objetivos chineses e enfraquece a Comunidade Económica do Leste Asiático. Justificativa suficiente de Washington para o apoio à guerra no Iémene. Mas os hutis dão aos Emirados Árabes uma escolha amarga: atacar suas cidades ou ceder no estratégico Bab al-Mandeb.

Tudo isto faz parte do evoluir de uma nova ordem mundial, um novo modelo geostratégico, cuja evolução depende de quanto os protagonistas (EUA e aliados versus Rússia e China) possam resistir nos conflitos atuais.

[NR] Aos valores mencionados devem-se acrescentar os US$13,6 mil milhões aprovados por Biden em 24/Fev/2022 de ajuda militar e humanitária à Ucrânia.   A soma dos valores dados a fundo perdido para a Ucrânia é superior à soma dos valores emprestados a Portugal + Grécia durante o período em que estiveram sob a tutela de Troikas (UE, FMI e BCE).


Apoie o RD

Enter your email address:

Delivered by FeedBurner