SERÁ NECESSÁRIO PROLONGAR AINDA MAIS ESTA AMARGA EXPERIÊNCIA ?
Por Rui Valente
Em 2014 o Acordo Ortográfico continuou a ser imposto à força pelo Governo. Chegámos, assim, a novos patamares na iliteracia a que o país parece votado.
A recente série de artigos no “site” da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico não deixa margem para dúvidas: ficional, contatar, elítico, autótone, convição, impatante, sujacente, critografia, interrutor, Netuno, otometria, gravidez etópica, artefato, otogenário, fricionar, abrutamente, proveta idade, ácido lático, encritação, espetável, números fratais, ténica, plânton, conetar, trítico, inteletual, conveção, batericida, egício, etc, etc.
Esta torrente, que continua, desmonta as desculpas habituais: “foi uma gralha, é um caso pontual, não há constrangimentos, está tudo bem”. São milhares de erros que não existiam antes do AO, provenientes de fontes tão insuspeitas como o Diário da República, teses de doutoramento, bulas medicinais e rodapés de programas de televisão.
Primeiro veio a TLEBS, fazendo tábua rasa de conceitos e de uma nomenclatura centenária, comum a dezenas de Línguas e inviabilizando a troca de conhecimentos entre pais e filhos. Com o AO, chegámos ao reino das facultatividades e do “escreve-se como se diz”.
Bem podemos (fingir) decidir “nunca” utilizar o AO. Mas temos mesmo de o utilizar, quando lemos. O AO entra-nos pelos olhos dentro. E faz doer a vista. Em poucos anos, o AO conseguiu a proeza de instituir o folclore das ementas de restaurante.
Já se sabia que o AO não traduz uma evolução da Língua. A Língua evolui e sempre evoluirá, mas essa evolução reflecte-se no vocabulário. Pouco ou nada tem que ver com ortografia (pelo contrário, uma mudança artificial na ortografia, como é o caso, afecta claramente a pronúncia). Agora sabemos também que a suposta “simplificação” não existe; ao invés, cria um verdadeiro caos ortográfico.
De resto, o AO sempre foi uma miragem — não é possível unificar regras ortográficas quando pt-PT e pt-BR já levam mais de cem anos de divergência. Mas Cavaco Silva ia ao Brasil em visita oficial, era preciso dar algum colorido à agenda mediática da viagem. E assim se imolou uma norma elegante, coerente e, principalmente, estável como é a de 45, substituindo-a por um conjunto de arbitrariedades. Alguém acha que a Língua Portuguesa ficou melhor, enquanto instrumento de comunicação e de raciocínio?
Em 2015 entrámos no último ano do período de transição. Será necessário prolongar ainda mais esta amarga experiência? Não me parece. Até porque, reconheça-se, no AO nada funcionou. Se, a nível interno é o caos, no plano internacional as coisas não estão melhor: Angola e Moçambique continuam sem ratificar o Acordo e Angola poderá mesmo criar a sua própria norma, como já se escreveu no Jornal de Angola. O Brasil, por seu turno, pondera abandonar o Acordo em favor de alterações ainda mais radicais.
Perante este cenário alucinante, ocorre perguntar: para que serve o Acordo?
É certo que estamos em plena crise. O Acordo Ortográfico parece um mal menor no meio das dificuldades que atravessamos. No entanto, se há um caso emblemático, em que é imperioso dizer “basta!”, é este. A crise leva-nos à ruína, mas o AO distorce a nossa identidade, alienando um património histórico e cultural precioso.
Não posso, portanto, deixar de felicitar o Jornal da FENPROF pela sua decisão de não deixar cair o assunto. Foi também em 2014 que a Associação Portuguesa de Tradutores recuou na decisão de adoptar o AO. No ano anterior tinha sido a Sociedade Portuguesa de Autores. Não admira: autores e tradutores são das classes mais afectadas pelo AO.
Os professores são, também eles, uma classe altamente prejudicada pelo AO. Não só porque “ensiná-lo” é um atentado à nossa cultura, mas também porque muitos professores se sentem perseguidos e intimidados por continuarem a utilizar a grafia de 45 — um direito que lhes assiste, mesmo à luz do próprio AO.
Esperemos que em 2015 seja a vez da própria FENPROF dizer: já chega! O desafio aqui fica.
A recente série de artigos no “site” da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico não deixa margem para dúvidas: ficional, contatar, elítico, autótone, convição, impatante, sujacente, critografia, interrutor, Netuno, otometria, gravidez etópica, artefato, otogenário, fricionar, abrutamente, proveta idade, ácido lático, encritação, espetável, números fratais, ténica, plânton, conetar, trítico, inteletual, conveção, batericida, egício, etc, etc.
Esta torrente, que continua, desmonta as desculpas habituais: “foi uma gralha, é um caso pontual, não há constrangimentos, está tudo bem”. São milhares de erros que não existiam antes do AO, provenientes de fontes tão insuspeitas como o Diário da República, teses de doutoramento, bulas medicinais e rodapés de programas de televisão.
Primeiro veio a TLEBS, fazendo tábua rasa de conceitos e de uma nomenclatura centenária, comum a dezenas de Línguas e inviabilizando a troca de conhecimentos entre pais e filhos. Com o AO, chegámos ao reino das facultatividades e do “escreve-se como se diz”.
Bem podemos (fingir) decidir “nunca” utilizar o AO. Mas temos mesmo de o utilizar, quando lemos. O AO entra-nos pelos olhos dentro. E faz doer a vista. Em poucos anos, o AO conseguiu a proeza de instituir o folclore das ementas de restaurante.
Já se sabia que o AO não traduz uma evolução da Língua. A Língua evolui e sempre evoluirá, mas essa evolução reflecte-se no vocabulário. Pouco ou nada tem que ver com ortografia (pelo contrário, uma mudança artificial na ortografia, como é o caso, afecta claramente a pronúncia). Agora sabemos também que a suposta “simplificação” não existe; ao invés, cria um verdadeiro caos ortográfico.
De resto, o AO sempre foi uma miragem — não é possível unificar regras ortográficas quando pt-PT e pt-BR já levam mais de cem anos de divergência. Mas Cavaco Silva ia ao Brasil em visita oficial, era preciso dar algum colorido à agenda mediática da viagem. E assim se imolou uma norma elegante, coerente e, principalmente, estável como é a de 45, substituindo-a por um conjunto de arbitrariedades. Alguém acha que a Língua Portuguesa ficou melhor, enquanto instrumento de comunicação e de raciocínio?
Em 2015 entrámos no último ano do período de transição. Será necessário prolongar ainda mais esta amarga experiência? Não me parece. Até porque, reconheça-se, no AO nada funcionou. Se, a nível interno é o caos, no plano internacional as coisas não estão melhor: Angola e Moçambique continuam sem ratificar o Acordo e Angola poderá mesmo criar a sua própria norma, como já se escreveu no Jornal de Angola. O Brasil, por seu turno, pondera abandonar o Acordo em favor de alterações ainda mais radicais.
Perante este cenário alucinante, ocorre perguntar: para que serve o Acordo?
É certo que estamos em plena crise. O Acordo Ortográfico parece um mal menor no meio das dificuldades que atravessamos. No entanto, se há um caso emblemático, em que é imperioso dizer “basta!”, é este. A crise leva-nos à ruína, mas o AO distorce a nossa identidade, alienando um património histórico e cultural precioso.
Não posso, portanto, deixar de felicitar o Jornal da FENPROF pela sua decisão de não deixar cair o assunto. Foi também em 2014 que a Associação Portuguesa de Tradutores recuou na decisão de adoptar o AO. No ano anterior tinha sido a Sociedade Portuguesa de Autores. Não admira: autores e tradutores são das classes mais afectadas pelo AO.
Os professores são, também eles, uma classe altamente prejudicada pelo AO. Não só porque “ensiná-lo” é um atentado à nossa cultura, mas também porque muitos professores se sentem perseguidos e intimidados por continuarem a utilizar a grafia de 45 — um direito que lhes assiste, mesmo à luz do próprio AO.
Esperemos que em 2015 seja a vez da própria FENPROF dizer: já chega! O desafio aqui fica.
Artigo publicado nas páginas 26/27 do Jornal da FENPROF, edição de Janeiro de 2015.
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