E AGORA QUE A CONTRAOFENSIVA FALHOU?
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domingo, 24 de setembro de 2023

E AGORA QUE A CONTRAOFENSIVA FALHOU?

Antony Blinken já reconheceu que “o que está a acontecer no mundo é mais do que um teste à ordem mundial pós-Guerra Fria. É o seu fim”.



Por Major-General Carlos Branco*

Passados quase três meses desde o seu início, torna-se claro que a contraofensiva ucraniana não atingiu o objectivo a que se tinha proposto: chegar ao Mar de Azov, tendo apenas conseguido aproximar-se, nalguns sítios, da principal linha defensiva russa. Perante estes desenvolvimentos interrogamo-nos sobre qual será o passo seguinte, uma vez não existir unanimidade nem consenso sobre a matéria.

A maioria das respostas enquadra-se em duas abordagens genéricas: uma que defende a possibilidade de se avançar para uma solução política, e outra que defende a continuação dos combates, e a preparação de uma nova ofensiva em 2024 e, se for preciso, outra em 2025, até ao último ucraniano.

A generalidade dos defensores da primeira abordagem são ou encontra-se próxima dos decisores políticos ou de quem tem responsabilidades executivas no establishment político norte-americano. Incluem no seu cálculo estratégico o impacto benéfico que o congelamento da situação militar poderá vir a ter nas eleições presidenciais norte-americanas, a realizarem-se lugar no final de 2024, independentemente de o conflito poder ou não ser retomado mais tarde, aproveitando-se a pausa nos combates para armar, treinar e equipar as debilitadas forças armadas ucranianas.

Embora o congelamento da situação militar não signifique a vitória de ninguém, é mais vantajoso para a Ucrânia e para os EUA, não só pelo motivo já explicado, mas também porque dá mais tempo aos EUA para implementarem a sua diplomacia informal, permitindo-lhes negociar com Moscovo acordos vantajosos para lá do Teatro de Operações da Ucrânia, que lhe proporcionem benefícios na competição com Pequim.

Contrariando um dos objectivos propostos, a contraofensiva ucraniana não veio trazer maior poder negocial à Ucrânia, conferindo-lhe a possibilidade de se sentar à mesa das negociações numa situação vantajosa. Pelo contrário, não só evidenciou a incapacidade de Kiev repelir as forças russas do território ucraniano impossibilitando a concretização do seu objectivo estratégico, como causou imensas baixas, difíceis de repor, e um imenso rombo nos equipamentos fornecidos pela ajuda internacional, colocando-as numa situação de extrema vulnerabilidade.

Em alternativa, poder-se-ia negociar, eventualmente, uma solução política mais ambiciosa, para lá de um “simples” congelamento da situação tática, do tipo coreano ou alemão (oeste e leste). Esta abordagem tem vindo a ganhar um número cada vez maior de aderentes (entre outros, Sarkozy, Viktor Orban, etc.). As eleições em Setembro na Eslováquia poderão alargar a lista dos apoiantes desta causa.

A comunicação social norte-americana próxima do Partido democrata tem-se inclinado nesta direcção. O Secretário de Estado Antony Bliken terá procurado, na sua recentemente “prolongada” estadia em Kiev, persuadir o presidente Zelensky da bondade deste tipo de soluções. A favor desta resposta, estaria o cansaço internacional do apoio prestado a Kiev com tendência para diminuir. Como escreveu Fareed Zakarias, “os ucranianos estão determinados a perseverar, mas temem que os seus aliados não o façam.”

Está por determinar se as recentes demissões dos vice-ministros ucranianos da defesa não visarão colocar em posições críticas do aparelho de estado elementos facilitadores deste tipo de soluções.

Alguns observadores acreditam que os russos estão determinados em manter o conflito até à realização das eleições presidenciais norte-americanas, na esperança de que Donald Trump seja eleito e deixe de apoiar ou reduza significativamente o apoio a Kiev.

Os defensores da segunda abordagem abraçam a ideia de continuar a guerra por esta estar a atingir o objectivo, isto é, enfraquecer a Rússia. No entanto, nenhum deles conseguiu ainda esclarecer o que entende por enfraquecer a Rússia e, consequentemente, até onde se deve e/ou pode ir. Por outras palavras, como se identifica o momento em que a Rússia vai estar suficientemente enfraquecida? Quais os critérios?

Um dos apoiantes desta abordagem, Mitt Romney defende que “Os danos causados à Rússia fazem com que o investimento na Ucrânia valha a pena… É a coisa certa a fazer… Portanto, gastar 20 mil milhões de dólares – ou seja, 2% do nosso [norte-americano] financiamento militar – para ajudar a Ucrânia a derrotar e enfraquecer a Rússia é um dos investimentos mais inteligentes e económicos que podemos fazer.”

O presidente polaco Andrzej Duda vibra com estas declarações que contribuem para colocar a Polónia como o ator “excecional” na resposta à ameaça russa. Segundo ele, explicando porque é que os EUA deviam mobilizar-se contra a ajuda à Ucrânia, “agora, o imperialismo russo pode ser parado de modo barato, porque os soldados americanos não estão a morrer. Mas se não pusermos agora um fim à agressão russa haverá um alto preço a pagar.” Para Duda, ajudar Kiev equivale a “enfraquecer um dos maiores adversários estratégicos da América”.

Pertencem a este grupo os que, confrontados com o facto incontornável da contraofensiva não estar a correr bem, consideram que a guerra na Ucrânia será uma longa luta. Em reforço desta ideia, recordemos o que disse recentemente o Secretário-Geral da NATO Jans Stoltenberg. Como disse o antigo CEMGFA do Reino Unido Richard Barrons a “Ucrânia não pode vencer agora a Rússia, mas a vitória é possível em 2025”.

Contudo, quem parece estar a enfraquecer é o Ocidente, incapaz de responder capazmente às solicitações da Ucrânia. O Almirante Rob Bauer Chairman do Comité Militar da Aliança reconheceu publicamente que a necessidade ucraniana em munições era superior à capacidade de produção da indústria de defesa ocidental. Por seu lado, a especialista em assuntos de Segurança Kori Schake num artigo na revista “The Atlantic” fez soar as campainhas sobre a capacidade militar norte-americana em caso de um conflito de larga- escala, alertando para o risco de o primeiro exército do mundo poder perder uma guerra em grande escala devido à escassez de munições.”

Segundo Schake, o problema “não tem a ver com a Ucrânia – mas com os Estados Unidos que, em princípio, não estão prontos para a guerra”. “A quantidade de armas que fornecemos [EUA] à Ucrânia é insignificante em comparação com as armas necessárias que não temos nos nossos armazéns”. “A lacuna na produção de defesa criou uma lacuna alarmante entre o que os Estados Unidos dizem que podem fazer e o que efetivamente podem fazer”.

Ambas as abordagens apresentadas partem do pressuposto de que a Rússia não tem capacidade para obter uma vitória militar sobre a Ucrânia, o que parece incontornável no momento em que este texto é redigido, mas poder vir ter. A acontecer, isso significaria uma vitória da Rússia e uma derrota norte-americana com imensos danos reputacionais para Washington, em cima do imenso empenho colocado neste conflito materializado nos 113 mil milhões de dólares gastos em cerca de ano e meio de guerra no apoio às Forças Armadas da Ucrânia, algo a que os EUA já nos habituaram, se tivermos em conta as guerras que provocou após a II Guerra Mundial e que não venceu (excluímos a guerra do Iraque (1990) e a da Coreia que “empatou”).

Qualquer das respostas apresentadas não é neutral em termos das consequências e dos resultados, apenas condicionará os termos de algo não escamoteável: “as coisas nunca mais serão as mesmas. O que está a acontecer no mundo é mais do que um teste à ordem mundial pós-Guerra Fria. É o seu fim”, como reconheceu Antony Blinken.

Por isso, dadas as consequências dramáticas que essas respostas poderão ter na definição dessa nova Ordem, esse exercício deve ser feito de modo extremamente rigoroso pelos líderes das grandes potências, que não podem alijar responsabilidades pelo que daí resultar.

Contudo, esta constatação cândida de Blinken omite quem foi o responsável por termos chegado aqui. Apesar de reconhecer que estes desenvolvimentos “serão objecto de estudo e debate nas próximas décadas”, Blinken parece não estar concentrado no essencial do problema. Os EUA ainda não saíram, nem sabem como vão sair da guerra na Ucrânia, e já se preparam para se meterem noutra, quando é evidente a sua impreparação para tal aventura.


*Investigador do IPRI-NOVA

Fonte: Jornal Económico

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