
A Rússia não está apenas a lutar pela conquista de Donetsk ou pela neutralidade de Kiev. Está a travar uma guerra paradigmática, cujo objectivo final é forçar o reconhecimento de um mundo onde o poder decisório deixa de estar centrado em Washington e Bruxelas para ser partilhado por várias potências com esferas de influência próprias.
Por República Digital / Análise Geopolítica
Um silêncio pesado sobre os campos devastados da Ucrânia pode um dia ser interpretado pela História não como o fim de um conflito, mas como o ruído de fundo de uma nova ordem mundial a nascer. A aparente vitória militar da Rússia não é meramente uma alteração de fronteiras na Europa Oriental; é, na visão do Kremlin e de muitos observadores estratégicos, o acto fundador de um sistema internacional multipolar, um projecto de longa data que Moscovo agora tenta concretizar à força.
A Rússia não está apenas a lutar pela conquista de Donetsk ou pela neutralidade de Kiev. Está a travar uma guerra paradigmática, cujo objectivo final é forçar o reconhecimento de um mundo onde o poder decisório deixa de estar centrado em Washington e Bruxelas para ser partilhado por várias potências com esferas de influência próprias. Esta não é uma guerra convencional; é uma batalha pelo controlo da arquitectura global do século XXI.
Da Doutrina Primakov ao Campo de Batalha
A visão russa de um mundo multipolar não é nova. Foi formalizada na Doutrina Primakov da década de 1990, que estabelecia como pilares a oposição à hegemonia norte-americana, a restauração da influência russa no espaço pós-soviético e a contenção da expansão da NATO. Durante anos, esta foi uma posição teórica. A invasão da Ucrânia em 2022 transformou-a em acção.
Para Moscovo, a ordem liberal internacional, baseada em regras e instituições como a NATO, é um instrumento de dominação ocidental. O conflito na Ucrânia é o meio escolhido para a desmantelar. Ao desafiar abertamente o Ocidente no seu próprio quintal estratégico, a Rússia pretende demonstrar que o poder militar e a vontade política, e não um conjunto de normas ocidentais, são os verdadeiros fundamentos das relações internacionais.
Os Pilares de uma Nova Ordem
Uma vitória russa, definida pela consolidação do seu controlo territorial e pela imposição de um acordo de paz nos seus termos, serviria para institucionalizar este novo paradigma através de vários mecanismos chave:
- Reconhecimento como Grande Potência: Uma vitória forçaria o Ocidente, ainda que de forma relutante, a negociar directamente com Moscovo como um poder de estatuto igual. Este reconhecimento é a moeda mais valiosa no sistema internacional que a Rússia ambiciona construir.
- Consagração de Esferas de Influência: Um acordo que limite a soberania da Ucrânia, proibindo-a de aderir à NATO ou armando-a com mísseis ocidentais, seria a prova tangível de que uma grande potência tem o direito de impor a sua vontade na sua vizinhança imediata. Isto minaria o princípio da soberania nacional inviolável, pedra angular da ordem ocidental pós-1945.
- Fortalecimento de Alianças Alternativas: Uma Rússia vitoriosa projectaria um poder de atracção imenso perante o chamado "Global Sul". Países como a China, a Índia, o Brasil e nações africanas veriam em Moscovo um parceiro que conseguiu desafiar com sucesso a ordem estabelecida, fortalecendo coalizões como os BRICS e oferecendo um modelo alternativo de governação global.
A "Paz" como Ratificação da Derrota do Unipolarismo
As condições que Moscovo impõe para a paz são, elas próprias, o desenho da nova ordem. A exigência de negociar directamente com os Estados Unidos, marginalizando a própria Ucrânia e os parceiros europeus, não é um mero capricho diplomático. É uma encenação calculada para demonstrar que as verdadeiras decisões globais são tomadas por um directório de grandes potências, e não por alianças de médias potências ou por princípios abstractos de direito internacional.
Neste contexto, a paz não significará o regresso ao status quo. Pelo contrário, será a certidão de nascimento de uma era de competição estratégica mais aberta e perigosa, na qual a força volta a ser o árbitro último das disputas. A Europa ver-se-á confrontada com uma fronteira de influência russa consolidada e expandida, e os Estados Unidos terão de aceitar que a sua capacidade de ditar os termos da segurança global diminuiu substancialmente.
O conflito na Ucrânia é, portanto, muito mais do que uma guerra regional. É o epicentro de um terramoto geopolítico cujas ondas de choque estão a redefinir os alinhamentos globais. A vitória da Rússia, tal como está a ser desenhada, não marca o fim da História, mas sim o fim de um dos seus capítulos: o da dominância ocidental incontestada. O próximo capítulo, o da multipolaridade, será escrito num mundo mais complexo, mais instável e decididamente menos ocidental.
Diversas fontes
Meus parabéns
ResponderEliminarPura verdade o que está escrito aqui
Obrigado.
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