DOIS ANOS DE PRISÃO DE JULIAN ASSANGE: COMO O WIKILEAKS ABRIU OS NOSSOS OLHOS PARA A ILUSÃO DA LIBERDADE
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sexta-feira, 20 de junho de 2014

DOIS ANOS DE PRISÃO DE JULIAN ASSANGE: COMO O WIKILEAKS ABRIU OS NOSSOS OLHOS PARA A ILUSÃO DA LIBERDADE

DOIS ANOS DE PRISÃO DE JULIAN ASSANGE: COMO O WIKILEAKS ABRIU OS NOSSOS OLHOS PARA A ILUSÃO DA LIBERDADE

Julian Assange, forçado ao exílio na embaixada do Equador, há dois anos, acabou por evidenciar o mito da liberdade ocidental


Por Slavoj Žižek


Nós nos lembramos dos aniversários de eventos importantes de nossa época: 11 de setembro (não apenas o ataque às Torres Gémeas em 2001, mas o golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973), o Dia D etc. Talvez outra data deva ser adicionada a esta lista: 19 de Junho.

A maioria de nós gostaria de dar um passeio durante o dia para tomar uma lufada de ar fresco. Deve haver uma boa razão para aqueles que não podem fazê-lo – talvez eles tenham um trabalho que os impede (mineiros, mergulhadores), ou uma estranha doença que faz com que a exposição à luz solar seja um perigo mortal. Mesmo prisioneiros têm a sua hora diária de caminhada ao ar fresco.

Faz dois anos desde que Julian Assange foi privado deste direito: ele está confinado permanentemente ao apartamento que abriga a embaixada equatoriana em Londres. Se sair, seria preso imediatamente. O que Assange fez para merecer isso? De certa forma, pode-se entender as autoridades: Assange e seus colegas denunciantes [whistleblowers] são frequentemente acusados de serem traidores, mas são algo muito pior (aos olhos das autoridades).

Assange se auto-designou um “espião do povo”. “Espionagem para o povo” não é uma traição simples (o que significa que ele ele actuaria como um agente duplo, vendendo nossos segredos para o inimigo); é algo muito mais radical. Ela mina o próprio princípio da espionagem, o princípio de sigilo, uma vez que seu objectivo é fazer com que os segredos se tornem públicos. Pessoas que ajudam o WikiLeaks não são mais denunciantes anónimos que denunciam as práticas ilegais de empresas privadas (bancos e empresas de tabaco e petróleo) para as autoridades públicas; eles denunciam ao público em geral essas próprias autoridades públicas.

Nós realmente não soubemos de nada através do WikiLeaks que não suspeitássemos — mas uma coisa é suspeitar de modo geral e outra ter dados concretos. É um pouco como saber que um parceiro sexual está nos traindo. Pode-se aceitar o conhecimento abstracto disso, mas a dor surge quando se conhecem os detalhes picantes, quando se tem fotos do que eles estavam fazendo.

Quando confrontado com tais fatos, cada cidadão decente dos EUA não deveria se sentir profundamente envergonhado? Até agora, a atitude do cidadão médio foi um desmentido hipócrita: preferimos ignorar o trabalho sujo feito por agências secretas. A partir de agora, não podemos fingir que não sabemos.

Não é o suficiente ver o WikiLeaks como um fenómeno anti-americano. Estados como China e Rússia são muito mais opressivos do que os EUA. Basta imaginar o que teria acontecido com alguém como Chelsea Manning em um tribunal chinês. Com toda a probabilidade, não haveria julgamento público; ela iria simplesmente desaparecer.

Os EUA não tratam os prisioneiros da mesma maneira brutal – por causa de sua prioridade tecnológica, eles simplesmente não precisam da abordagem abertamente brutal (e estão mais do que prontos a aplicá-la quando necessário). Mas é por isso que os EUA são uma ameaça ainda mais perigosa para a nossa liberdade do que a China: as medidas de controle não são percebidas como tal, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.

Em um país como a China, as limitações da liberdade são claras para todos, sem ilusões. Nos Estados Unidos, no entanto, as liberdades formais são garantidas, de modo que a maioria das pessoas vive sem nem sequer estar conscientes do quanto são controladas por mecanismos estatais.

Em maio de 2002, foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham anexado um chip de computador capaz de transmitir sinais elementares directamente no cérebro de um rato – o que permite aos cientistas controlar os movimentos do rato por meio de um mecanismo parecido com um controle remoto de um carro de brinquedo. Pela primeira vez, o livre-arbítrio de um animal vivo foi tomado por uma máquina externa.

Talvez aí resida a diferença entre os cidadãos chineses e nós, cidadãos livres em países liberais ocidentais: os ratos humanos chineses são pelo menos conscientes de que são controlados, enquanto nós somos os ratos estúpidos passeando em torno do conhecimento de como nossos movimentos são monitorizados.

O WikiLeaks está perseguindo um sonho impossível? Definitivamente não, e a prova é que o mundo já mudou desde suas revelações.

Não ficamos apenas cientes de muita coisa das actividades ilegais dos EUA e de outras grandes potências. O WikiLeaks tem conseguido muito mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em que vivem. Algo que até agora nós tolerávamos silenciosamente tornou-se problemático.

É por isso que Assange foi acusado de causar tanto mal. No entanto, não há violência no que o WikiLeaks está fazendo. Nós todos já vimos a cena clássica dos desenhos animados: o personagem chega a um precipício, mas continua correndo, ignorando o fato de que não há chão sob seus pés; ele começa a cair apenas quando olha para baixo e percebe o abismo. O WikiLeaks está lembrando aqueles que estão no poder de que devem olhar para baixo.

A reacção de muitas pessoas que sofreram lavagem cerebral da media sobre as revelações do WikiLeaks pode ser resumido nos versos memoráveis da música final do filme de Altman “Nashville”: “Você pode dizer que eu não sou livre, mas isso não me preocupa”. O WikiLeaks faz com que nos preocupemos. E, infelizmente, muitas pessoas não gostam disso.

* Publicado em inglês no The Guardian. Tradução brasileira.

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