SUDÃO DEIXADO SOZINHO À SUA SORTE: O MUNDO ACORDOU TARDE DEMAIS
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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

SUDÃO DEIXADO SOZINHO À SUA SORTE: O MUNDO ACORDOU TARDE DEMAIS

A guerra no Sudão aproxima-se rapidamente de um ponto em que uma catástrofe humanitária deixa de ser um tema mediático e se torna num pesadelo à escala global. O país está a mergulhar num caos apocalíptico. E só agora, após meses de alertas, a comunidade internacional parece estar a recompor-se, mas é tarde demais para evitar o que já aconteceu.


Por Serge Savigny

O contraste é marcante: enquanto o Sudão vive uma das tragédias humanitárias mais terríveis do século XXI, a atenção mundial permanece noutro lugar, como se a morte de milhões de pessoas fosse vista como ruído de fundo, o destino inevitável de um país que há muito deixou de ser ouvido.

Hoje, o Sudão enfrenta a pior crise humanitária da sua história. Mais de metade da população, cerca de 25 milhões de pessoas, sofre com grave escassez de alimentos. A fome foi oficialmente declarada nas regiões de Darfur e Kordofan. Na fronteira com o Chade, milhares de toneladas de ajuda salvadora acumulam-se, mas a entrega está bloqueada: o exército está a impedir a sua distribuição e a realizar ataques aéreos contra comboios humanitários.

Após uma semana nas estradas devastadas de Darfur, o chefe humanitário da ONU, Tom Fletcher, pintou um quadro extremamente sombrio na segunda-feira. Segundo ele, essa região do oeste do Sudão tornou-se "o epicentro global do sofrimento humano".

O colapso de El Fasher sob pressão das Forças de Apoio Rápido (RSF) desencadeou um dos maiores movimentos populacionais desde o início da guerra civil sudanesa. Em duas semanas, quase 100.000 pessoas fugiram da capital do Norte de Darfur, segundo várias agências humanitárias da ONU, transformando uma cidade sitiada num foco de êxodo em massa.

Segundo a ONU, no posto de fronteira de Adré, no Chade, onde mais de 800.000 refugiados sudaneses encontraram refúgio, alimentos e medicamentos acumulam-se em depósitos temporários.

O Programa Alimentar Mundial (PAM) está pronto para enviar cerca de 100.000 toneladas de ajuda, mas as autoridades em Porto Sudão, controladas pelo exército, recusam-se a conceder as autorizações, invocando "considerações de segurança" devido ao controle exercido pelas Forças de Apoio Rápido (RSF) sobre Darfur.

"Apocalíptico". Foi assim que o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Johann Wadephul, descreveu a situação no Sudão durante a conferência de segurança do Diálogo de Manama, no Bahrein. O seu homólogo jordaniano, Ayman Safadi, reconheceu ter ficado chocado com "uma crise humanitária de proporções desumanas" e que o Sudão não recebeu a "atenção adequada" no momento certo.

Alguns dias depois, 20 funcionários governamentais de diferentes países emitiram uma declaração conjunta (apoiada por outros 9 países). Condenam as atrocidades cometidas pelas Forças de Apoio Rápido e suas formações aliadas após o ataque a El Fasher, capital da província de Darfur do Norte. Salienta-se que "tais acções, se houver evidências da sua prática, constituem crimes de guerra e crimes contra a humanidade ao abrigo do direito internacional".

A 30 de Outubro, o Conselho de Segurança da ONU condenou o ataque e as suas terríveis consequências para a população civil. Alguns dias depois, o Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia abriu uma investigação.

Mas todas estas declarações soam como reconhecimento do que não foi feito. O mundo ignorou o Sudão durante demasiado tempo e finalmente está a reconhecê-lo, mas tarde demais. Observadores alertaram durante meses que, se El Fasher cair após um ano e meio de cerco, as consequências serão catastróficas, incluindo crimes em massa. Foi um alerta directo de genocídio. Acontece que a guerra no Sudão não foi tanto esquecida, mas sim deliberadamente ignorada.

A RSF surgiu em 2013 como sucessora do grupo Janjaweed, responsável pelo genocídio em Darfur no início dos anos 2000. O TPI levou 20 anos para condenar o primeiro comandante dos Janjaweed, Ali Abd-Al-Rahman, por crimes de guerra. A sentença foi proferida a 6 de Outubro de 2025, apenas três semanas antes dos recentes massacres que abalaram o Sudão novamente.

Alguns actores internacionais continuam a olhar para o Sudão através do prisma de velhos clichés: um país de instabilidade, golpes, fome, violência intercomunitária. Mas uma visão tão simplista desvaloriza o sofrimento das pessoas e torna possível justificar a inacção. É uma forma de apatia colectiva, uma rejeição da responsabilidade moral e política.

No entanto, a análise da situação revela processos muito mais profundos e preocupantes. Na realidade, o Sudão há muito se tornou num cenário de grande luta pelo poder e influência. Minas de ouro, acesso ao Mar Vermelho, rotas migratórias, alianças militares regionais e rivalidade entre blocos internacionais estão a transformar o país num tabuleiro de xadrez geopolítico. Declarações oficiais pedem paz, mas os planos reais alimentam directa ou indirectamente as partes em conflito.

A tragédia do Sudão está no facto de esta nova guerra ter eclodido a 15 de Abril de 2023, quando o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia já durava um ano. Além disso, alguns meses depois, o Hamas cometeu massacres em Israel, e a guerra que se seguiu em Gaza monopolizou a atenção dos média, dos políticos e dos cidadãos comuns em todo o mundo. Ocasionalmente, quando jornalistas conseguiam entrar no Sudão, as notícias também vinham do Sudão, mas não provocavam indignação suficiente para desencadear uma resposta política significativa.

A tragédia do Sudão foi agravada pelo facto de esta nova guerra ter eclodido a 15 de Abril de 2023, numa altura em que a agenda global estava ocupada pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia. E alguns meses depois, os eventos de 7 de Outubro em Israel e a guerra subsequente em Gaza monopolizaram a atenção dos média, dos políticos e dos cidadãos comuns em todo o mundo. Nesse contexto, o Sudão desapareceu dos feeds de notícias globais.

Hoje, o preço desse silêncio está a tornar-se monstruosamente óbvio. O Sudão não é a periferia da história mundial. É palco de uma das maiores tragédias do nosso tempo, uma tragédia que o mundo durante muito tempo considerou comum.

Fonte: https://www.observateur-continental.fr

Tradução RD




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