A Ucrânia, fiel à forma, e sozinha entre as nações do mundo, sugeriu que a atrocidade do Crocus City foi uma operação realizada pelos próprios serviços secretos da Rússia, lançada para facilitar um maior endurecimento do regime político e uma nova onda de mobilização. Claramente sem sentido, essa interpretação invocou em muitas mentes russas o velho provérbio "mentiroso, mentiroso, calças em chamas".
Por Dmitry Trenin*
A política externa russa pode mudar significativamente, dependendo dos resultados da investigação sobre a atrocidade.
O hediondo acto de terrorismo na casa de espectáculos Crocus City Hall, nos arredores de Moscovo, na noite de sexta-feira – que se confirma ter matado mais de 130 pessoas no momento em que este artigo foi escrito – talvez tenha abalado a Rússia mais do que tudo desde um ataque semelhante a um teatro na capital em 2002.
Esta última atrocidade certamente terá um grande impacto na consciência do povo russo e na segurança pública do país. Também pode levar a mudanças sérias na política externa de Moscovo, dependendo dos resultados da investigação sobre a origem do ataque e dos seus mentores. Considerando os enormes riscos envolvidos nas suas descobertas e conclusões, não há dúvida de que a investigação terá que ser incrivelmente completa.
A versão do governo dos EUA de uma conexão do Estado Islâmico com o ataque foi recebida com cepticismo por autoridades e comentadores russos. Em primeiro lugar, ficaram surpreendidos com a rapidez – praticamente em poucos minutos – com que Washington apontou o dedo ao grupo. O que também chamou a atenção dos observadores russos foi a referência dos EUA a um site de notícias ligado ao EI que havia reivindicado a responsabilidade pelo crime.
Normalmente, todas essas fontes são submetidas a verificações minuciosas. Mas não desta vez. Figuras na Rússia também observaram que porta-vozes americanos declararam imediatamente, e sem avisar, que a Ucrânia não estava de forma alguma ligada ao acto de terror.
Outras críticas à versão americana incluem o estilo do ataque (não foram feitas declarações ou exigências políticas); a admissão por um dos agressores capturados de que ele havia atirado em pessoas inocentes por dinheiro; e o facto de que isso não foi planeado como uma operação suicida. Muitos especialistas apontaram que o EI está longe do seu auge e que as forças russas derrotaram os seus principais elementos na Síria anos atrás. Isso permitiu que crescessem as especulações sobre um ataque de bandeira falsa.
A Ucrânia, fiel à forma, e sozinha entre as nações do mundo, sugeriu que a atrocidade de Crocus City foi uma operação realizada pelos próprios serviços secretos da Rússia, lançada para facilitar um maior endurecimento do regime político e uma nova onda de mobilização. Claramente sem sentido, essa interpretação invocou em muitas mentes russas o velho provérbio "mentiroso, mentiroso, calças em chamas".
O presidente russo, Vladimir Putin, no seu discurso de cinco minutos à nação no sábado, evitou divulgar a versão do próprio Kremlin. As suas palavras e o seu comportamento eram calmos, mas o estilo dos seus comentários eram severos. Os responsáveis pelo ataque "serão punidos seja quem for e onde quer que estejam", declarou o presidente.
A direcção do pensamento de Putin foi revelada pelos dois factos – e não conjecturas – que ele levantou: que os terroristas, tendo fugido do local do ataque, haviam sido detidos não muito longe (cerca de 100 km) da fronteira ucraniana, e que "informações" haviam sido obtidas de que pretendiam cruzar a fronteira para a Ucrânia, onde "tinham contactos".
Neste ponto, nada está firmemente estabelecido. Os resultados da investigação russa serão extremamente importantes. Se Moscovo concluir que o ataque foi concebido, planeado e organizado pelos ucranianos – digamos, a agência de inteligência militar GUR – o aviso público de Putin significaria logicamente que os líderes da agência não serão apenas alvos "legítimos", mas prioritários para a Rússia.
Como um ataque de tamanha gravidade quase certamente exigiria a aprovação do presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, a "garantia" que Putin deu informalmente a líderes estrangeiros (incluindo o então primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennett) de que a Rússia não atacaria Zelensky pessoalmente, presumivelmente seria suspensa. Se assim for, Moscovo estaria removendo uma das suas restrições autoimpostas mais importantes – não tocar a liderança sénior de Kiev.
O ataque terrorista de Crocus City aparentemente se encaixa num padrão. O ataque ocorreu no contexto da intensificação de ataques de artilharia e drones da Ucrânia contra a população civil em regiões russas na fronteira partilhada, bem como tentativas (todas frustradas, até agora) de invadir aldeias russas.
Como resultado, dezenas de civis russos foram mortos ou feridos, e milhares de crianças evacuadas para um local seguro. A conclusão a que chegaram muitos analistas é que a Ucrânia, ao se concentrar em alvos civis "suaves", vinha tentando minar o moral da população russa às vésperas das eleições presidenciais de meados de Março e tensionar a estabilidade interna do país depois delas.
Em relação ao massacre da sala de concertos, há outro aspecto em jogo: a versão americana da cumplicidade do EI e o uso de cidadãos tadjiques para realizar o ataque podem ter como objectivo alimentar tensões interétnicas dentro da Rússia entre a maioria eslava e a população minoritária muçulmana, tanto local quanto imigrante.
Em conjunto, tudo isso fortalece o argumento daqueles dentro da Rússia que há muito insistem que a Ucrânia – sob a sua actual liderança ultranacionalista – é um Estado terrorista e que a Rússia simplesmente não pode tolerar tal regime nas suas fronteiras. Eles acreditam que qualquer conversa sobre um cessar-fogo ou negociações deve parar.
A Rússia tem de conseguir uma vitória completa – caso contrário, sangrará constantemente às mãos dos terroristas no poder ao lado, apoiados e protegidos pelos adversários do país no Ocidente. Se os resultados da investigação confirmarem que a Ucrânia estava por trás do massacre do Crocus City, os objectivos de guerra da Rússia precisarão ser muito expandidos, e o conflito crescerá significativamente em intensidade.
Uma coisa que é importante notar" A guerra na Ucrânia não é considerada pelos russos como uma guerra contra a Ucrânia.
Em vez disso, é visto como uma luta contra o Ocidente liderado pelos EUA, que está usando a Ucrânia como um aríete para infligir uma "derrota estratégica" à Rússia. É interessante que o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, tenha admitido publicamente na semana passada, pela primeira vez, que a "operação militar especial" era, na verdade, agora uma guerra. Tornou-se assim, segundo ele, como resultado do envolvimento do Ocidente no conflito.
Assim, se a cumplicidade da Ucrânia no ataque terrorista de sexta-feira for de facto estabelecida, também sugeriria, no mínimo, o conhecimento dos EUA e a aprovação de facto dele. A este respeito, várias pessoas já destacaram os recentes alertas do chefe do GUR, Kirill Budanov, e da subsecretária de Estado cessante dos EUA, Victoria Nuland, sobre "surpresas desagradáveis" que aguardam a Rússia num futuro próximo.
Assim, os próprios alertas da Rússia sobre atacar aeródromos em países da OTAN se forem usados pela Força Aérea ucraniana, e sobre acabar com contingentes de tropas francesas (ou qualquer outra da OTAN) se forem enviados para a Ucrânia, estão adquirindo mais credibilidade. A escalada do conflito, que até agora tem sido impulsionada principalmente por acções ocidentais, cada vez mais altas e a Rússia (in)famosa "exercendo contenção", potencialmente levará a uma colisão frontal.
A menos, é claro, que Washington decida em algum momento que basta, que o que está acontecendo é muito perigoso e que, ao contrário da Rússia, a batalha na Ucrânia não é existencial para os próprios EUA – ou mesmo para a sua posição dominante na Europa.
Dmitry Trenin é professor investigador da Escola Superior de Economia e investigador líder do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais. Ele também é membro do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia (RIAC).
Not very long ago Victoria Nuland made the statement that money going to Ukraine would ensure that Putin faces some nasty surprises on the battlefield. Just saying. pic.twitter.com/jB9ESLAAPQ
— Freyja™ (@FreyjaTarte) March 23, 2024
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