CONFLITO TAILÂNDIA-CAMBOJA AMEAÇA DELIBERADAMENTE A ESTABILIDADE NA ÁSIA
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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

CONFLITO TAILÂNDIA-CAMBOJA AMEAÇA DELIBERADAMENTE A ESTABILIDADE NA ÁSIA

A retoma dos combates ao longo da fronteira tailandesa-cambojana em Dezembro sublinha até que ponto os conflitos locais no Sudeste Asiático são cada vez mais influenciados por estratégias das grandes potências destinadas a conter a ascensão da China.


Por Brian Berletic

Hostilidades violentas eclodiram novamente de início a meados de Dezembro no Sudeste Asiático, ao longo das fronteiras entre a Tailândia e o Camboja, após um difícil “cessar-fogo” marcado por incidentes e provocações durante meses desde a última grande vaga de combates em Julho de 2025.

Apesar do cessar-fogo daí resultante, as questões fundamentais na raiz do conflito permanecem totalmente por resolver, sobretudo porque decorrem de interesses estrangeiros que utilizam conflitos regionais para dificultar tanto a ascensão da Ásia em geral como da China em particular.

A natureza dos combates

Os combates eclodiram depois de minas terrestres e fogo de armas ligeiras no Camboja terem provocado feridos e mortos entre tropas tailandesas no início de 8 de Dezembro, levando a uma espiral de violência que envolveu artilharia pesada, aviões de combate, drones e intenso fogo de armas ligeiras em vários pontos ao longo da fronteira entre a Tailândia e o Camboja.

O Camboja lançou centenas de munições BM-21 (sistema de lançamento múltiplo de foguetes não guiados) contra a Tailândia, levando o exército tailandês a retaliar com ataques aéreos e de drones dirigidos tanto contra os próprios lançadores como contra os depósitos locais de munições utilizados para armazenar os foguetes. Os combates posicionais conduziram a alterações diárias no controlo do território disputado, tal como já ocorrera em confrontos anteriores em Julho.

No meio dos combates, imagens e declarações do exército tailandês indicavam que o Camboja também estava a utilizar drones FPV (visão em primeira pessoa) ao estilo ucraniano — tendo sido igualmente interceptadas comunicações com operadores de drones de língua inglesa.

Isto indica que os Estados Unidos, quer directamente quer através de um dos seus numerosos proxies, têm estado a ajudar o Camboja de forma semelhante àquela que utilizaram para derrubar com sucesso o governo sírio no final do ano passado. Nessa altura, foi admitido que drones FPV ao estilo ucraniano e operadores ocidentais ajudaram militantes a repelir e, eventualmente, a dominar as forças sírias apoiadas pela Rússia e pelo Irão.

A intenção dos EUA de utilizar o diferendo fronteiriço entre a Tailândia e o Camboja como parte de uma política muito mais ampla de “estender a China” significa que o perigo da instabilidade continuará a pairar sobre a região num futuro próximo.

As suspeitas quanto ao papel dos EUA na violência recente aumentam devido aos repetidos apelos do Camboja à intervenção norte-americana como mediadora, face à recusa reiterada da Tailândia em aceitar as directrizes de Washington.

“Estender a China”

Os combates intermitentes na fronteira estão a perturbar a paz e a estabilidade, ameaçando não apenas a rápida ascensão da China, mas também a do resto da Ásia, incluindo parceiros próximos da China, como a Tailândia e, naturalmente, o próprio Camboja.

Este conflito faz parte de uma estratégia já documentada e aplicada contra a Rússia, destinada a cercá-la e contê-la através da pressão económica e da criação e expansão de múltiplos conflitos simultâneos na sua periferia.

Essa estratégia foi detalhada num documento de 2019 publicado pela RAND Corporation, intitulado “Estender a Rússia”, e incluía, de forma notória, planos para provocar uma guerra por procuração mortal contra a Rússia na Ucrânia, continuar a armar os “rebeldes sírios” que desde então derrubaram o governo sírio apoiado pela Rússia, tentar uma mudança de regime na Bielorrússia, explorar tensões no Sul do Cáucaso, reduzir a influência russa na Ásia Central e desafiar a presença russa na Transnístria.

Importa referir que todas essas opções foram ou estão a ser implementadas, e que os Estados Unidos seguem uma estratégia semelhante relativamente à China.

No início de Dezembro deste ano, a Fundação e Instituto do Presidente Ronald Reagan recebeu o actual Presidente do Estado-Maior Conjunto, General Dan Caine. No seu discurso, referiu especificamente a estratégia actual dos Estados Unidos para manter a sua liderança global e lidar com a ascensão da China.

Durante a sua intervenção, afirmou explicitamente:

«… portanto, quando observamos a ascensão das forças armadas chinesas, o nosso objectivo no seio das Forças Conjuntas é criar dilemas múltiplos e simultâneos para TODOS os adversários em todo o mundo, de modo a que sejam extremamente cautelosos e hesitantes em fazer qualquer coisa que possa representar uma ameaça ao povo americano.»

Embora se possa argumentar que o General Caine se referia aos “dilemas” criados pelas capacidades militares dos EUA no contexto de um conflito hipotético com a China, ao longo do seu discurso associou repetidamente o conceito de criar “dilemas” a todas as áreas do poder geopolítico dos EUA, incluindo a corrida em curso à inteligência artificial — muito para além de qualquer conflito actual entre os EUA e a China — tal como os Estados Unidos fizeram com a Rússia.

De muitas formas, os EUA já seguem uma política de “estender a China”, conforme definida no documento da RAND contra a Rússia, mas aplicando-a à China na sua periferia.

Os EUA já estão a apoiar o conflito armado no Oeste da Tailândia, em Myanmar, onde apoiam militantes que atacam infra-estruturas da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China, responsáveis pelo transporte de hidrocarbonetos da costa de Myanmar até à fronteira Sul da China. Constituída por oleodutos, essa infra-estrutura permite à China contornar o Estreito de Malaca, que os Estados Unidos planeiam bloquear em caso de conflito aberto entre os EUA e a China, segundo documentos de política norte-americanos.

Esses mesmos documentos chegam a afirmar que, para que um bloqueio marítimo à China tenha êxito, a infra-estrutura chinesa da BRI também teria de ser destruída. Um documento chega mesmo a propor o seu bombardeamento em caso de conflito entre os EUA e a China, mas é claro que os EUA já começaram a atacar infra-estruturas chinesas da BRI por procuração muito antes de tal conflito eclodir.

Ataques semelhantes apoiados pelos EUA estão a ocorrer em todo o Paquistão, tendo como alvo infra-estruturas chinesas da BRI nesse país.

Como parte desta estratégia de “estender a China”, os Estados Unidos estacionaram dezenas de milhares de tropas na Coreia do Sul, no Japão e, cada vez mais, nas Filipinas. Mantêm igualmente centenas de militares norte-americanos na ilha chinesa de Taiwan. Para além de acolher tropas dos EUA, estes países foram incentivados por Washington a adoptar posições cada vez mais hostis em relação a Pequim, apesar dos danos económicos causados por esse processo.

O exército dos EUA opera em todo o Mar do Sul da China, alegadamente para preservar a “liberdade de navegação” contra o que descreve como uma ameaça chinesa, quando, na realidade, think tanks financiados pelo governo norte-americano admitem que a maior parte do tráfego marítimo nessas águas tem origem e destino na própria China. Isto significa que os EUA procuram ameaçar e, em última instância, perturbar o transporte marítimo no Mar do Sul da China, e não protegê-lo.

Tal como o documento da RAND visava derrubar países na periferia da Rússia, os Estados Unidos têm tentado durante anos derrubar e assumir o controlo político de países na periferia da China através de grupos de oposição financiados e dirigidos pelo chamado soft power norte-americano, nomeadamente o National Endowment for Democracy (NED). Mais recentemente, os EUA conseguiram derrubar o governo do Nepal, situado mesmo na fronteira chinesa.

Os EUA têm igualmente exercido uma ampla interferência política no Sudeste Asiático, especialmente para derrubar governos pró-China e substituí-los por regimes clientes de Washington, particularmente na Tailândia.

Visar a Tailândia para “estender” a China

Desde 2001, os Estados Unidos procuram assumir o controlo político da Tailândia através do bilionário apoiado pelos EUA Thaksin Shinawatra e dos seus aliados políticos. Nos últimos anos, os EUA começaram também a apoiar o bilionário tailandês Thanathorn Juangroongruangkit e os seus vários partidos políticos.

Ambos estes bilionários são servidores zelosos dos interesses norte-americanos. Durante o seu mandato, de 2001 a 2006, Thaksin ajudou a privatizar empresas estatais tailandesas antes de as vender a investidores norte-americanos, enviou tropas tailandesas para participar na ocupação norte-americana do Iraque e acolheu centros secretos de detenção da CIA. Embora Thaksin nunca se tenha oposto publicamente às relações Tailândia-Pequim, demonstrava claramente uma preferência por Washington.

Thanathorn, por seu lado, é um opositor vocal a uma cooperação mais estreita com a China. Os seus vários partidos políticos sempre se opuseram a qualquer aquisição de armamento à China, preferindo acordos com os Estados Unidos e a Europa. O próprio Thanathorn chegou a pedir o cancelamento do projecto ferroviário de alta velocidade tailandês-chinês já em construção, a favor do sistema “hyperloop”, que ainda não existe.

Durante uma apresentação pública do hyperloop, Thanathorn revelou as suas intenções subjacentes ao afirmar:

«Penso que, nos últimos cinco anos, demos demasiada ênfase às nossas relações com a China. Queremos reduzi-las e reequilibrar ainda mais as nossas relações com a Europa, o Japão e os Estados Unidos.»

Ao longo dos últimos 20 anos, os Estados Unidos ajudaram a organizar violentas “revoluções coloridas” com o objectivo de colocar Thaksin, Thanathorn e os seus aliados políticos no poder. O antigo primeiro-ministro cambojano Hun Sen, amigo próximo e associado de Thaksin, ajudou os EUA a interferir politicamente na Tailândia, acolhendo grupos de oposição tailandeses e permitindo que o Camboja servisse de base operacional para os mesmos.

Mesmo durante os combates na fronteira, partidos de oposição apoiados pelos EUA procuraram reescrever toda a Constituição da Tailândia, incluindo disposições destinadas a facilitar a tomada do poder por partidos apoiados por Washington e a impedir que instituições tailandesas, incluindo os tribunais e o exército, os removam.

Entre as “organizações não governamentais” (ONG) que promovem a reescrita da Constituição encontra-se a iLaw. Reconhecendo que é financiada pelo governo dos EUA, pelo NED e pela Open Society de George Soros, a iLaw representa um vector de influência estrangeira dirigido aos assuntos políticos internos mais sensíveis da Tailândia, em nome de partidos políticos igualmente comprometidos e apoiados pelos EUA.

Esta influência estrangeira constitui um perigo que ameaça a Tailândia, tão perigoso quanto a influência externa que ameaça a fronteira tailandesa com o Camboja. Em conjunto, estes “dilemas” são criados especificamente para enfraquecer e, em última instância, eliminar um dos parceiros mais próximos da China na região.

As relações China-Tailândia como alvo

Apesar dos estereótipos persistentes sobre uma Tailândia “pró-americana” e um Camboja “pró-chinês”, uma análise cuidada da realidade actual revela uma história diferente.

Um dos argumentos mais frequentemente citados a favor dessa tese é o estatuto da Tailândia como “grande aliado não-OTAN” dos Estados Unidos, estatuto concedido em 2003, quando Thaksin Shinawatra se encontrava no auge do seu poder e entregava a Tailândia como proxy a Washington, antes de ser derrubado por um golpe militar em 2006.

Após Thaksin e a sua irmã Yingluck Shinawatra terem sido afastados do poder em 2006 e 2014, respectivamente, a Tailândia gastou cerca do dobro do Camboja em armamento proveniente da China, incluindo maiores quantidades e armas mais sofisticadas. De forma notável, isso inclui carros de combate principais, veículos blindados de transporte de pessoal, veículos de combate de infantaria, sistemas de defesa aérea, sistemas conjuntos de lançadores de foguetes guiados de longo alcance, drones e até navios de guerra.

O comércio da China com a Tailândia é significativamente superior ao comércio com o Camboja, tal como o investimento em infra-estruturas. Para além da linha ferroviária de alta velocidade, a China investiu ou foi mandatada para construir hospitais, edifícios governamentais e terminais aeroportuários em toda a Tailândia. Empresas chinesas, em especial do sector automóvel, estão a investir em fábricas na Tailândia, investimentos esses muito superiores aos realizados no Camboja vizinho.

A China é simultaneamente a maior fonte de importações da Tailândia e o seu maior mercado de exportação.

Para além dos laços económicos e da importante e crescente relação entre o exército tailandês e a China, a respeitada monarquia tailandesa estabeleceu igualmente relações próximas com Pequim. O actual rei da Tailândia, Rama X, chegou recentemente a visitar o Presidente chinês Xi Jinping em Pequim, algo inédito para um rei tailandês. A irmã do rei Rama X, a princesa Maha Chakri Sirindhorn, fala mandarim e realizou várias visitas oficiais a Pequim.

Por estas razões, e por muitas outras, o exército e a monarquia tailandesa têm sido alvo durante anos de grupos de oposição financiados pelos EUA, que tentaram silenciá-los ou eliminá-los completamente enquanto instituições tailandesas fortes e independentes.

Camboja: um elo fraco

O Camboja, por outro lado, embora a grande maioria do seu equipamento militar seja de fabrico chinês e aceite investimentos chineses em imobiliário e manufactura, considera os Estados Unidos o seu maior mercado de exportação e utiliza o dólar norte-americano como moeda de facto dentro do próprio país.

Nos últimos dois ou três anos, o Camboja começou também a virar-se para uma cooperação militar mais estreita com os Estados Unidos, desde que o filho do antigo primeiro-ministro Hun Sen, Hun Manet, formado na academia militar norte-americana de West Point, assumiu o poder. Durante este período, o Camboja recebeu navios de guerra norte-americanos em portos recentemente renovados pela China (e planeia novas visitas), anunciou a retoma de exercícios militares conjuntos com os EUA e iniciou discussões sobre uma cooperação de defesa mais ampla.

Por outras palavras, embora a China seja a maior fonte de equipamento militar e investimento estrangeiro do Camboja, os Estados Unidos continuam a exercer uma influência desproporcionada sobre o país, primeiro no plano económico e agora no plano político.

Como as exportações representam a maior parte do PIB cambojano e a grande maioria das exportações do Camboja se destina aos Estados Unidos — sendo essas exportações sobretudo têxteis e vestuário produzidos em fábricas construídas por investidores chineses —, os EUA podem facilmente extorquir concessões ao governo cambojano ameaçando impor proibições a bens que, segundo eles, contornam os controlos comerciais norte-americanos aplicados à própria China.

É fácil perceber não apenas como o diferendo fronteiriço entre a Tailândia e o Camboja se insere na política norte-americana em curso de “estender a China”, mas também como os EUA convenceram o Camboja a voluntariar-se para se tornar uma “Ucrânia” do Sudeste Asiático para alcançar esse objectivo.

Independentemente de qualquer cessar-fogo após as hostilidades de Dezembro, a intenção dos EUA de utilizar o diferendo fronteiriço entre a Tailândia e o Camboja como parte da sua política muito mais ampla de “estender a China” significa que o perigo da instabilidade continuará a pairar sobre a região num futuro próximo.

A única questão que se coloca agora é se a Tailândia e a China conseguirão manter a paz e a estabilidade na região, permitindo que a Ásia continue a sua ascensão, ou se as tentativas dos Estados Unidos para minar um parceiro-chave da China — tanto nas suas fronteiras como no interior do seu sistema político — transformarão a Ásia num ambiente de conflito e caos semelhante àquele em que os Estados Unidos mergulharam o Médio Oriente, a Europa e África durante tantos anos.


Fonte: New Eastern Outlook

Tradução RD




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