ISRAEL ACABOU. O FUTURO É DA PALESTINA. A VERDADE MAIS DIFÍCIL ESTÁ POR ESCREVER
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domingo, 29 de dezembro de 2024

ISRAEL ACABOU. O FUTURO É DA PALESTINA. A VERDADE MAIS DIFÍCIL ESTÁ POR ESCREVER

Quero os judeus livres de Israel. Quero os judeus livres. Quero os palestinianos livres. Toda a gente livre desde o rio até ao mar.


Por Alexandra Lucas Coelho

1. No dia 19 de Dezembro de 2023 acordei em Jenin (norte da Cisjordânia), após mais uma invasão israelita. As ruas estavam rebentadas de fresco, crateras e montanhas de lama, jorros de esgoto. O exército retirara com blindados e bulldozers mas continuava no céu, pronto a disparar. Ouvíamos o drone por cima da cabeça. Jenin é um bastião da resistência palestiniana, chamam-lhe A Pequena Gaza. Eu estava lá por Jenin e por Gaza, onde Israel matava jornalistas desde 7 de Outubro, barrando a entrada de outros jornalistas, de forma inédita na história do jornalismo.

Portanto, eu nunca poderia relatar o que se passava naquele momento na Cidade de Gaza. Mas esse 19 de Dezembro foi também o dia em que um homem, por sorte médico, teve de amputar a perna da sua sobrinha sem anestesia, em cima da mesa da cozinha. Uma bomba levara a parte de baixo da perna, ela morreria de hemorragia. O tio limpou o sangue com a esponja da loiça, cortou com a faca da cozinha, coseu a artéria com a agulha da costura, porque era o que havia e lá fora caíam bombas. Impossível chegar ao Al-Shifa, a cinco minutos. O maior hospital de Gaza, onde tantas vezes estive a saber de feridos, como a 19 de Dezembro estive no hospital de Jenin.

Um ano depois, já não me lembrava ao certo onde estava. Fui verificar agora, quando vi a data dessa amputação no mais exaustivo relatório que um indivíduo fez desde 7 de Outubro. Na última versão em inglês tem 124 páginas e 1401 notas de rodapé, remetendo para milhares de fontes (informação institucional, organizações de direitos humanos, media tradicionais, textos académicos, redes sociais). Chama-se Bearing Witness to the Israel-Gaza War e é um trabalho escrito e compilado pelo israelita Lee Mordechai, historiador da Universidade Hebraica de Jerusalém, doutorado em Princeton. Mordechai, 42 anos, encontrava-se numa sabática nos EUA no 7 de Outubro. Queria fazer algo, e a partir de Dezembro começou a reunir informação além da que estava a ser vista pela maioria das pessoas em Israel. Em Março de 2024, o documento tornou-se viral no ex-Twitter em hebraico. Mordechai ampliou o alcance: para seja quem for que queira saber. Esclarece no começo: “Não recebi qualquer pagamento para escrever este documento, e fi-lo em compromisso com os direitos humanos, a minha profissão e o meu país.” Viu milhares de imagens horríveis. Não as mostra no texto, dá os links. Não usa palavras como “terrorista” ou “sionismo”. Chama “militantes” ou “operacionais” aos membros do Hamas. Li o documento: é um texto claro, sucinto, quase sempre factual, com poucos adjectivos. Considera o ataque do Hamas e outros grupos a 7 de Outubro uma atrocidade. Tal como considera a resposta de Israel um genocídio, e no fim explica porquê.

Os palestinianos têm sido a grande fonte directa do maior horror do nosso tempo de vida: aquele que está em curso desde 7 de Outubro. Quem acompanha os incontáveis testemunhos que eles nos têm dado do seu próprio holocausto, sobretudo pelo Instagram, vai reconhecer centenas de momentos no relatório de Mordechai. Idem para quem segue as agências e tribunais da ONU, a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e muitas outras organizações, incluindo israelitas. Uma sucessão de horrores e recordes. Resumo aqui: recorde de bombas e de crianças mortas à bomba, à fome, de diarreia, hipotermia ou outros problemas que não seriam mortais, se fossem assistidas. Recorde de crianças mortas com tiros na cabeça, no peito. Recordes de médicos e trabalhadores humanitários mortos. Recorde de licença para matar civis por cada alvo de alto ranking: 300 para 1. Recorde de civis mortos com as mãos no ar ou bandeiras brancas. Recorde de detidos arbitrariamente, homens, mulheres e crianças, com tortura, violação e mortes nas cadeias (muitíssimo acima de Guantánamo). Recorde de sacos de plástico para corpos, e saquinhos de plástico para pedaços de carne e ossos. Famílias com muitos saquinhos de plástico, que eram filhos, filhas, mães, pais. Quase 100 por cento da população deslocada: 2,3 milhões de pessoas. Destruição ou razia da grande maioria das casas, escolas, hospitais, mesquitas, edifícios em geral. Fome e epidemias em massa. Pessoas a comer erva e ração de animais, e cães a comer os cadáveres das pessoas. Lixo e esgoto por toda a parte. Ausência de electricidade e água potável. Cesarianas sem anestesia, além das amputações e outras cirurgias. Sofrimento contínuo e atroz de centenas de milhares de mutilados, queimados, doentes. Mais de 45 mil mortos oficiais, milhares de desaparecidos, centenas de valas comuns, projecções de centenas de milhares de mortos. Sem falar na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, onde o Hamas não está no poder, e milhões de outros palestinianos são reféns de um governo de colonos, que nunca capturou semelhante quantidade de terra, árvores e animais, ou matou e prendeu tanta gente.

Tudo isto já estava documentado, e Mordechai compila muitos exemplos. Mas talvez a parte mais singular do relatório, pelo próprio facto de ser israelita e falar hebraico, seja o que ele expõe sobre Israel, o ponto a que chegou a desumanização dos palestinianos. E eis a chave, diz Mordechai: a desumanização dos palestinianos é o que permite este horror. Resumo: a grande maioria dos israelitas que não quer saber a verdade (as muitas verdades além da propaganda); que nas sondagens acha bem limpar os palestinianos de Gaza; que é contra a entrada de ajuda (e em muitos casos a trava, incendeia); que acima de todas as instituições aprova as Forças Armadas de Israel, acredita que são as mais morais do mundo. Até porque essas forças são ela mesma, a grande maioria dos israelitas, pais e filhos, mães e filhas. Um exército de tiro ao pato, onde é possível matar palestinianos por tédio ou por um post, onde cada um no terreno pode fazer o que lhe dá na telha, como testemunham soldados e oficiais que estiveram em Gaza. Não são excepções, são padrões. Militares que fazem de qualquer civil um terrorista, incluindo crianças e bebés. Que agem como se Gaza fosse um videojogo, planeiam alvos por Inteligência Artificial, dedicam execuções e explosões às namoradas (e namorados). Que fazem dos palestinianos cães. Que filmam e postam o cadáver de um palestiniano a ser comido por um cão, seguido do lindo pôr-do-sol de Gaza. Que filmam e postam palestinianos passados a ferro por veículos militares, palestinianos despidos, atados, vendados, aos montes. Que recitam a Torah e a cada compasso disparam um morteiro. Que grafitam as paredes, incluindo das mesquitas, com insultos ao Islão e símbolos judaicos (fotografei em Jenin). Que posam no Tinder com fardas, armas, troféus da guerra, porque exterminar palestinianos é sexy. Que se postam com a lingerie das palestinianas, nas casas que arruínam. Enquanto a televisão israelita pode, por exemplo, promover um vídeo genocida em que crianças israelitas, com imagens de destruição em fundo, cantam sobre como Gaza será arrasada e em breve Israel vai cultivar os campos lá. Aliás, uma das últimas actualizações de Mordechai diz respeito à limpeza étnica do norte de Gaza, nestas últimas semanas de 2024, depois de uma líder dos colonos ter ido a Gaza, escoltada pelos soldados, para inspeccionar os futuros domínios das 500 famílias israelitas que ela diz que já estão prontas a mudar.

Há instruções escritas para esta limpeza étnica? Para o genocídio? Que se saiba, não. O que só convém às lideranças, como diz Mordechai, acautelando futuros julgamentos. Mas houve inúmeros apelos à destruição geral de Gaza, comparações dos palestinianos com animais, com bárbaros, com inimigos da Bíblia, que deviam ser erradicados até aos bebés. Ao mesmo tempo que milhões foram gastos em propaganda para destruir críticos de Israel (incluindo a ONU), comprar vozes pró-Israel, multiplicar histórias falsas. Como eram falsos os 40 bebés decapitados do 7 de Outubro, ou as violações em massa do Hamas, e relatos feitos pela organização israelita que primeiro esteve nos kibbutzim atacados, a ZAKA, que Mordechai hoje considera descredibilizada (não porque o que aconteceu a 7 de Outubro não tenha sido atroz, mas porque foi distorcido desde a raiz e aproveitado politicamente).

“Acredito que Israel tem tentado uma combinação destas três coisas: (1) remover os palestinianos de Gaza, especialmente no Norte; (2) tornar vastas partes da Faixa inabitáveis, esperando que isso contribua para o objectivo anterior; (3) matar as pessoas de Gaza por violência directa, fome ou prevenção de ajuda”, escreve Mordechai quando explica porque considera tratar-se de um genocídio, de acordo com os critérios da Convenção de Genebra.

Incluindo a intenção de o cometer.

2. No dia 7 de Outubro de 2023 voltei a casa de uma caminhada ao fim da manhã e peguei no telefone que ficara em cima da banca da cozinha. Quando vi as notícias, ali de pé, transida, pensei duas coisas, nenhuma racional. Uma foi: “Vou comprar um bilhete de avião.” A outra é algo que até hoje não escrevi publicamente, com as palavras que então pensei: “Israel acabou.”

Esta crónica sai um ano, dois meses e vinte e um dias depois disso, e é o que continuo a achar, mas hoje de forma mais detalhada. Claro que Israel não acabou no terreno, nem sei quando isso acontecerá. O que quero dizer é que a ideia de Israel acabou. Israel é hoje um estado pária para qualquer pessoa que queira realmente saber o que aconteceu desde 7 de Outubro. Que encare o que já mostraram ­— além dos próprios palestinianos — os tribunais e agências da ONU, a relatora da ONU para a Palestina, a Human Rights Watch, a Amnistia, centenas de outras organizações ou Lee Mordechai, desde 7 de Outubro. E antes disso, desde 2007, com o cerco a Gaza. E antes disso desde 1967, quando Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental (e os Montes Golã) foram ocupados, e colonizados. E antes disso desde 1948, quando centenas de milhares de palestinianos foram expulsos de suas casas, feitos refugiados. Até hoje em campos miseráveis do Líbano, da Jordânia, da Síria.

Os jovens do mundo que acordaram para Israel/Palestina a 7 de Outubro não entendem como foi possível um país ser fundado à custa de um povo. Muito menos como é possível um povo ser exterminado nos nossos telemóveis, com a ajuda dos nossos governantes. Porque é que um único país no mundo faz o que quer na ONU, incluindo cortar-lhe as pernas, banir o secretário-geral. Porque é que um povo parece valer mais do que qualquer outro. E porque é que os palestinianos valem menos do que Israel, a América ou a culpa da Europa. Numa palavra: racismo (étnico, religioso, cultural).

A ideia de Israel nasce na Europa colonial do fim do século 19. Uma Europa que achava que era ok extrair o que pudesse de África ou da Ásia, instalar-se lá, ser dona. Em parte sionista por amor aos judeus, em parte sionista para se livrar deles. Anti-semita de longa data, muitos séculos, muitas fogueiras, muitos pogroms, até ao Holocausto. E depois do Holocausto — do maior horror que a Europa do século 20 conheceu — funda-se então o Estado judaico, com a alavanca da culpa europeia, para que nunca mais, nunca mais.

Mas fundado no quê? Na destruição de outro povo. Na mentira de que era uma terra sem povo para um povo sem terra. A ideia de Israel está ferida desde o começo pela destruição e pela mentira. E a partir daí foi de vitória em vitória, até o Hamas abrir o alçapão em que Israel se despenhou.

O Hamas derrotou Israel no dia 7 de Outubro. Com um massacre contra civis, na sua maior parte, tal como milícias sionistas pré-Israel foram terroristas, e muitos outros movimentos recorreram ao terrorismo sem se resumirem a isso. O Hamas fortaleceu-se pela corrupção da Autoridade Palestina, pelo jeito que deu a Israel ter esse inimigo e pela vergonhosa incapacidade da comunidade internacional. Membros do Hamas torturaram o meu tradutor e amigo W., mas antes disso eu já não tinha ilusões sobre o Hamas. Simplesmente é um erro resumi-lo como terrorista.

A sociedade israelita viveu o maior trauma de sempre a 7 de Outubro. E a gente que hoje a lidera viu nisso uma grande oportunidade para concluir a Nakba de 1948, a Naksa de 1967. É o que Netanyahu tem estado a fazer, com os seus ministros colonos, supremacistas judaicos, a colaboração activa de muitos sectores da sociedade, a incapacidade de qualquer oposição, a anuência de uma maioria de israelitas. E abriu-se a frente libanesa, com o Hezbollah, e a frente síria, com a queda de Assad, tudo oportunidades. Expansão, conquista. Na verdade, auto-destruição. A espiral da queda no alçapão.

Os israelitas não vão recuperar como país do que fizeram, do que viram, e do que não fizeram e não quiseram ver. Uma sociedade doente, cada vez mais incapaz de reconhecer o outro, os outros. A ilusão de uma bolha étnico-religiosa, vendo anti-semitismo em todas as partes, da ONU ao Papa, da Irlanda à Amnistia Internacional. Validada porque o mundo a tentou destruir. E tentou.

Israel perdeu o mundo. Bem pode vir a sinistra Arábia Saudita assinar a normalização, estão bem uns para os outros. Idem os sinistros regimes árabes, todos, desde 1947, carrascos dos próprios povos, e de outros. Carrascos dos palestinianos. Somando o sinistro Irão: nenhuma democracia no Médio Oriente.

Não há futuro num Estado fundado na desumanização de outros. O começo de Israel já era o fim de Israel. O 7 de Outubro gerou a desumanização definitiva. O futuro é da Palestina ou não será. Não mais, ao fim de 76 anos. A Palestina perdeu o mundo durante 76 anos, mas agora Gaza é o mundo. E para jovens como Greta Thunberg está associada à própria luta pela vida da Terra.

E será inútil os guardiões da lenda Dois Estados virem com o papão de que isto deita os judeus ao mar. Quero os judeus livres de Israel. Quero os judeus livres. Quero os palestinianos livres. Toda a gente livre desde o rio até ao mar. Toda a gente livre: não há outra moral. Ou: nunca mais é para toda a gente.

3. Daqui a um mês, a 27 de Janeiro de 2025, Netanyahu não irá aos 80 anos da libertação de Auschwitz porque tem medo de ser preso por crimes contra a Humanidade. Há dias, no Haaretz, Gideon Levy resumiu o simbolismo alucinante disto. Era bom que Netanyahu fosse preso já, mas faz bem em não ir: Auschwitz não merece o homem que desde 7 de Outubro preside a Auschwitz-agora-em-directo. Uma criança morta por hora.

E aqui tocamos na última parte deste texto. A verdade mais difícil está por escrever porque, ao mesmo tempo que o horror nunca foi exposto como desde 7 de Outubro, ainda falta muito. E tudo isso será sobre nós: o tamanho do buraco humano.

Esse horror não seria possível sem as bombas e os milhões dos EUA. Biden é um criminoso de guerra. Como Scholz, Ursula, a maior parte da UE (com três ou quatro países a fazerem a diferença). O mundo que permite que se extermine um povo em nome de Deus, e ainda se considera religioso. Mas Deus não tem culpa, só os humanos mesmo.

Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, primeiro-ministro Luís Montenegro, ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel, restantes ministros: vão continuar a ser cúmplices de um genocídio? Quando vamos ter sanções a Israel? Quando vão ter coragem para enfrentar o fecho da embaixada israelita em Lisboa?

Quando vão exigir aos israelitas que querem ser portugueses que provem que não estiveram envolvidos neste genocídio? E que vão fazer quando os vossos filhos ou netos vos perguntarem que fizeram contra isto?

Lee Mordechai testemunha. Toda a gente pode testemunhar desde 7 de Outubro. Isto não é só sobre Israel e Palestina. É sobre nós.


Fonte: Público


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